A vitória da luz
Uma breve reflexão sobre a obra de Marcos Lopes
Por Rogério Santos
A pintura de Marcos Lopes se caracteriza pela consistência e propriedade em como apresenta não só um discurso proveniente de duas escolas de pintura fundamentais para o desenvolvimento da arte moderna, mas também um trabalho renovador pelo viés filosófico que suscita. Suprimidas essas características, mesmo assim, já estaríamos diante de um trabalho de grande relevância, onde fica evidente o domínio da técnica e um equilíbrio de tons e formas resolvidos com sensibilidade e imaginação apuradas, que não passam despercebidas ao público. Sem lançar mão de artifícios fáceis como temáticas polêmicas, violentas ou mesmo chocantes, o artista prefere construir um raciocínio e reflexão sobre sua visão de mundo baseados em fundamentos sólidos, e que até os dias atuais, são caros a qualquer obra advinda das artes plásticas. Assim, o estudo da forma, a observação demorada da luz, seus efeitos sobre os objetos e o modo de captação desses fenômenos pelos nossos olhos figuram como pedra de toque ao pintor Marcos Lopes. Pessoalmente, considero-o um artesão, no sentido mais profundo do termo: alguém que faz de seu ofício uma mescla de habilidade, dedicação e empenho de seu próprio existir. A manufatura dessa matéria tão etérea a que chamamos luz é o ponto central de sua obra. Até aí nada novo, visto que ao longo da história da arte a luminosidade tem sido objeto de reflexão dos maiores e mais importantes pintores. Mas ainda seria possível acrescentar algo novo, fresco, surpreendente a este tema já excessivamente abordado? O artista Marcos Lopes nos prova que sim. Vejamos…
Partindo de uma linguagem que remete diretamente ao Impressionismo, pela maneira como trata a fixação na tela do objeto pintado, seus quadros utilizam-se predominantemente da paisagem como matéria-prima temática. Dentro desse recorte, há um espaço especial para retratar a fauna e a flora. Há, porém, uma diferença substancial na utilização dos recursos dessa escola de pintura, pois, se para os impressionistas o objetivo era a captação do instante, no trabalho de Marcos Lopes o tempo é tratado a partir de sua essência mais característica, ou seja, a imensa e milenar envergadura e alcance de sua existência. Isso fica nítido e muito bem resolvido na série de pinturas intitulada “Paisagens-Luz”, onde o pintor, entre outras preocupações, propõe-se a retratar essa relação luz-paisagem-tempo de forma a dar relevo e plasticidade ao impalpável, nesse caso a luz, e principalmente o próprio tempo. Assim, sustentando essa paisagem retratada, temos um longo arco temporal que dá conta de diversos períodos da incidência da luz, seja em variados momentos do dia, diferentes estações do ano, ou em alguns casos, em anos diferentes, onde a paisagem apresentou mudanças no volume e contorno decorrentes de sua própria formação. Para conseguir a concisão plástica necessária para essa narrativa, o artista utiliza-se da abordagem utilizada pelos cubistas de vergar a dimensionalidade dos objetos trazendo-os à uma bidimensionalidade que permite revelar o que a rigidez da representação do espaço tridimensional a partir de um único ponto de fuga não permitiria ver. Na série “Paisagem-Luz”, essa ferramenta é representada por blocos, quase como se fossem recortes, que nos demonstram toda a sutileza e contraste construídos pelo tempo com a matéria da luminosidade. O que num primeiro momento pode parecer incoerente, leia-se a junção Impressionismo – Cubismo (o primeiro proveniente da espontaneidade e o segundo do analítico), logo revela-se
incontestável, já que o Cubismo nasce a partir da observação do trabalho do impressionista Paul Cézanne em seus quadros do Mont Sainte-Victoire. Na série “Paisagem-Luz”, esta junção de linguagens dá origem a uma narrativa onde o tema predominante é o existir da natureza. Disso provém a amplitude temporal vertida em matéria-prima para construção dessa obra. Além disso, há uma particularíssima digital desse artista que o identifica e destaca: nos referimos à sua posição geográfica de habitante de terras situadas nos trópicos, lugar onde a incidência da luz ocorre de maneira especial.
Há outra questão que me parece digna de nota e de reflexão nesse trabalho de retratar paisagens desse artista: a ausência da figura humana em suas paisagens. Em outros quadros fora da série “Paisagem-Luz”, não se encontra representação de pessoas, nem mesmo em desenhos ou pinturas que se ocupam de paisagens urbanas. Num primeiro momento isso pode parecer estranho, mas se pensarmos a partir da lógica do tempo da natureza, e não do humano, nos reposicionaremos frente a um novo relevo temático e reflexivo dos mais importantes. À revelia de nossa capacidade de interferir no ambiente natural que habitamos, nada muda o fato de que somos absolutamente precários e frágeis dentro de nossa limitação temporal. Logo, se o tempo apreendido por seus quadros é muito mais o da natureza do que propriamente do humano, é compreensível que essa figura tão perecível em sua brevidade acabe por si só evanescendo. As cidades e construções, sua obra e registro de existência, plasmam na tela a indicação da criatura que sobrevive além do criador. Mas que por si só lhe rende homenagem pelo existir de si mesma. São essas materializações, a prova irrefutável de que por ali passou um ser que, à revelia de sua precariedade, sonhou com o eterno. Quanto a isso, é interessante notar que os quadros de Marcos Lopes, via de regra – e a série “Paisagem-Luz” é prova disso – não tem moldura. E, mesmo dispensando esse importante acessório de isolamento que visa dar concisão e potencializar o tema da pintura, seus quadros notabilizam-se pela força expressiva e harmonia. Ora, toda a produção pictórica criada através da história da arte ocupava-se fundamentalmente da figura humana. Assim, se tomarmos a questão da brevidade da existência humana comparada com a existência da natureza, é compreensível que sejam necessárias as molduras, para que essa figura possa firmar-se em sua representação de forma atemporal, ou seja, para além da sua existência, para gerações futuras, ou como exemplo de costumes e hábitos de tempos passados. Logo, se a intenção é representar a paisagem natural em sua forma mais fidedigna, no quesito temporal do tema, não é necessário que a representação venha isolada por uma moldura, pois aquele tempo ali contido está para além, extravasa o próprio suporte.
É por todos esses elementos, e muitos outros que não foram possíveis abordar nesse reduzido espaço, que fazem a obra de Marcos Lopes figurar como um trabalho de relevância dentro da pintura brasileira contemporânea. Sua pintura é luminosa, e em todos os momentos revigorante, pois está para além dos dramas humanos, assentando-se na imensidão dos elementos naturais com sua duração imensurável. Entender esse fato e dar forma a esta verdade não é tarefa fácil, mas que a paleta de cores de Marcos Lopes pode dar conta.