– The Outsiders –

Como não somos da área de crítica literária, essas dicas têm o caráter do leitor ingênuo e sem nenhuma pretensão acadêmica ou de qualquer outro tipo.

Olhos d’água

Conceição Evaristo

Maria da Conceição Evaristo Brito, ou simplesmente Conceição Evaristo, nasceu em Belo Horizonte em uma família muito, muito pobre. Trabalhou como empregada doméstica para poder pagar seus estudos. Foi para o Rio de Janeiro já com 25 anos. Prestou um concurso público e cursou Letras na UFRJ. Suas primeiras publicações datam de 1990.

Nunca mais parou de publicar. Em entrevista dada a Lázaro Ramos, no Canal Brasil – Espelho, foi perguntada:

“Meia gota basta?” (frase tirada de um de seus livros.)

E ela respondeu: “Meia gota me basta desde que me deixe tranquila para conseguir a gota inteira.”

“Eu sem sombra de dúvidas sou brasileira, mas faço questão de afirmar esse afro-brasileiro. (…) Uma afirmativa que relembra uma afirmação relacionada a uma ancestralidade”.

O livro Olhos D’Água é composto de uma série de contos, narrado integralmente do ponto de vista de uma mulher. Todos eles. Se você é do tipo que não quer entrar em contato com a miséria, a violência, o descaso com que mulheres são tratadas e em especial mulheres pretas, não leia esse livro. Um soco no estômago da elite branca brasileira; no entanto, de uma delicadeza poética assombrosa. Uma mulher de coragem, uma mulher preta com muita força e coragem e com a literatura na ponta dos dedos. Uma mulher preta que sabe seu valor e seu lugar nesse mundo tão marcado pela cultura branca e europeia, no qual não havia lugar para a negritude, lugar que Evaristo conquistou com a sua literatura.

Trecho de um dos contos, o que dá título ao livro:

‘Uma noite, há anos, acordei bruscamente e uma estranha pergunta explodiu de minha boca. De que cor eram os olhos de minha mãe? Atordoada, custei reconhecer o quarto da nova casa em que eu estava morando e não conseguia me lembrar de como havia chegado até ali. E a insistente pergunta martelando, martelando. De que cor eram os olhos de minha mãe?

O que é meu

BORTOLUCI, José Henrique

O livro “O que é meu”, livro de estreia de José Henrique, doutor em sociologia pela Universidade de Michigan, professor da GV. Jovem e promissor escritor brasileiro, paulista do interior de São Paulo, trazendo a riqueza de um relacionamento cheio de emoções, as que estão explicitas e as que não são faladas, mas que aparecem nas entrelinhas do seu texto primoroso.

Um livro que, além da qualidade da escrita, traz um depoimento do olhar de filho descobrindo seu pai. Um jogo de foco entre a narrativa de um autor distante, comentador da história “oficial”, de dentro da academia, e a história vivida e narrada em primeira pessoa pelo pai, enquanto caminhoneiro, o que nos convida para uma maior intimidade. Um jogo entre o olhar mais de perto, mais emocional e o olhar mais distante, olhar do sociólogo acadêmico, mais frio.

Uma história de sofrimento e de luta pela vida, tanto do filho quanto do pai e, certamente, de toda uma família.

O livro permite uma leitura psicanalítica da figura paterna, mas isso deixo para que cada um faça a sua.  No meu entendimento, mostra a importância de uma mãe que presentifica o pai, mesmo quando este está ausente, ainda que  o autor talvez não tivesse a consciência de.

O relato de José Henrique promove muitas emoções no leitor, pelo menos assim aconteceu comigo. Chorei, senti saudade, senti raiva por não ter podido recuperar essa afetividade com meu pai, senti muitas coisas, e quero agradecer profundamente aquele que me presenteou com o livro. Obrigado aos José por esse lindo presente.

Um trecho do livro que abrirá certamente seu apetite para degustar uma narrativa tão carregada de afetividade.

Caminhoneiros conviviam com militares nessas frentes de expansão. Nos encontros cotidianos, a camaradagem por vezes dava lugar ao confronto, e nem sempre a autoridade estava do lado de lá. (p.81) (Nesse trecho temos a voz do autor)

Nós vinha vindo carregado de Porto Velho para São Paulo. Chegamo em Pimenta Bueno, lá em Rondônia e tava interditada a estrada. O atoleiro era tão grande daqui pra frente que não passava ninguém, nem o jipe do Exército tava andando por lá. Os soldado colocaram duas máquina de atravessado na estrada de terra, e tinha uma fila enorme de caminhão querendo passar. Eu tava em quinto lugar na fila.

Chovia dia e noite enquanto a gente tava ali. Não parava.

Aquela fila de caminhão ficou travada quatro dias. Tinha mais de cem caminhão. Chegou o quinto dia e o que nós decidimo? 

(nesse trecho que se segue ao anterior temos a voz do caminhoneiro, pai do autor)

Histórias da mesa

MONTANARI, Massimo

Não é um lançamento recente, mas é um livro imperdível, repleto de histórias sobre os comensais festivos na idade média e renascença, claro que da aristocracia, dos reis, imperadores e do papado.  Uma coletânea de histórias que comenta jantares com Carlos Magno, dieta de monges abades e papas, as brigas fúteis entre a nobreza.

Os vários relatos acontecem em o que hoje chamamos de Itália, França e da Alemanha, mas que eram à época ducados, principados. Dados importantes de como a cultura popular penetra nas classes sociais abastadas através dos temperos, comidas e preparos. Relata os privilégios que sempre existiram e continuam existindo. Um livro divertido e de leitura suave.

Vamos fazer uma pequena degustação de um dos trechos:

Notkero Balbulo, monge de São Galo, que no fim do século IX escreveu uma biografia do Imperador (Carlos Magno), narra uma ocasião em que Carlos, percorrendo o interior da França, passou por uma cidade (cujo nome não é especificado) e decidiu de súbito visitar o bispo. Não era — podemos presumir —uma visita de mera cortesia, tampouco uma homenagem à autoridade religiosa do lugar: na época carolíngia, os bispos estavam estreitamente integrados no sistema político e, aliás, representavam, ao lado dos condes, um dos eixos sobre o qual se apoiava a autoridade régia no plano periférico. Era uma visita de controle para verificar a lealdade do prelado, sua confiabilidade como funcionário local.

Evidentemente, o rei fica para comer: a obrigação de hospedá-lo (ele e todo seu séquito) é o primeiro dever dos súditos do reino. Um dever codificado, com um nome preciso: fodrum (nutrição) ou gistum (hospitalidade) ou, mais simplesmente, Servitium Regis (serviço do rei). (p. 31)

 E segue a história de como o bispo ficou em papos de aranha por ter sido avisado de última hora da visita do Imperador e, se você quiser saber o que aconteceu, leia o livro.

K- Relato de uma busca

Bernardo Kucinski

Apesar deste livro não ser um lançamento recente, 2016 foi sua última edição, a obra é de uma atualidade mais que impressionante. O título “K. Relato de uma busca” nos contempla em parte com o relato em si, que eu chamaria Relato de um Desespero. Desespero porque é uma busca em vão. O abrir de olhos de um pai para ver e conhecer sua filha de novo, ou quem sabe pela primeira vez.

Atual, pois é preciso que se conte ou se relate o que aconteceu durante a ditadura. Não dá mais para tentarmos encobrir o horror e a violência desse período. Não estou dizendo que esse mesmo horror e violência não aconteça nos dias de hoje, acontece, porém de outra forma. O brasileiro não é só gentil como se quer vender a imagem. O brasileiro não é só simpático e hospitaleiro — essa é  uma imagem que serve de cortina de fumaça. Esse livro arranca todos ou talvez alguns véus sobre o horror que foi a ditadura.

Sobre o autor:

Bernardo Kucinski foi jornalista, professor de jornalismo, autor de livros sobre Economia e Política entre outros. Sua estreia na literatura se deu tardiamente, mas com toda maturidade que isso possa significar.

Um aperitivo:

Escolhi um trecho do capítulo chamado Imunidades, um paradoxo.

O pai que procura a filha desaparecida não tem medo de nada. Se no começo age com cautela não é por temor, mas porque atônito, ainda tateia como um cego o labirinto inesperado da desaparição. O começo é um aprendizado, o próprio perigo precisa ser dimensionado, não para si, porque ele não tem medo de nada, para os outros: amigos, vizinhos, colegas de faculdade. (p.83)

Sobrevidas

Abdulrazak Gurnah

Abdulrazak foi agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura de 2021, e certamente não por acaso. O livro SOBREVIDAS é um relato das atrocidades realizadas pela colonização na África feita pelos europeus. Fala, principalmente, dos alemães e ingleses. Não aborda o tema de forma binária. Apresenta personagens bons e maus, mais violentos e menos violentos com uma integridade de quem conhece o que está narrando. Se Kucinski relata a violência no Brasil durante a ditadura, Gurnah nos mostra a violência na África que só recentemente tem sido revelada, através da literatura. Detalhes das humilhações, do sofrimento e das brutalidades infligidas física e moralmente por pessoas que se consideram superiores por sua condição de branquitude da pele.  Narrativa muito triste, porém, extremamente necessária. A Literatura funcionando como testemunha e registro histórico.

Apesar da temática ser dolorosa, a narrativa flui de forma natural, como um rio flui sobre seu leito.

Sobre o autor:

Abdulrazak Gurnah veio do arquipélago de Zanzibar, na costa da Tanzânia, na década de 1960. Busca refúgio no Reino Unido, devido a perseguição aos cidadãos muçulmanos.  É autor de vários livros e sua temática principal é a perseguição. Entre seus livros: Paradise, O desertor, e outros.

Petisco para degustação:

Hamza ficou aos cuidados de Pascal que vinha várias vezes ao dia cuidar dele, dar água ou a sopa que o pastor receitou ou limpá-lo. Hamza tinha apenas uma noção vaga e indeterminada do que estava acontecendo. Sua febre era alta e não havia parte de seu corpo que não doesse. Ele não conseguia mais localizar a fonte de sua dor. O ferimento era na coxa esquerda e todo aquele lado do corpo latejava com um pulsar martelante. Ele não sentia a perna direita nem conseguia mexer os braços. Às vezes abrir os olhos já era um esforço imenso. O pastor vinha examiná-lo durante o dia e dizia a Pascal como limpá-lo e deixa-lo confortável. O rosto dos dois homens entrava e saía de seu campo de visão, e dia e noite se confundiam. (p.146)

Dez dias no manicômio

Nellie Bly

Apesar de não ser um lançamento e nem mesmo um romance, esse livro — ou podemos dizer essa reportagem — publicado pela jornalista Elizabeth Cochrane Seaman, sob o pseudônimo de Nellie Bly, no jornal The World, que à época tinha como proprietário Joseph Pulitzer, é um relato pungente, para usar um termo fora de moda, porém muito apropriado nesse caso.

 Elizabeth nasceu na Pensilvânia no dia 05 de maio de 1864. Em 1885, muda-se de estado; o relato foi publicado em 1887, contando todas as atrocidades do Hospício na Ilha de Blackwell, em Nova York.

Seu relato é feito com o olhar leigo, não preocupado com questões diagnósticas, apenas em denunciar um tratamento pouco humano e humanizado recebido pelas mulheres internadas no hospital. A escrita é direta e sem rodeios ou floreios, mas profundamente comovente e desvela claramente a revolta da autora, numa época que ainda não se cogitava qualquer luta antimanicomial. Elizabeth foi uma precursora em muitos sentidos.


O diário de um louco

LU XUM

Lun Xun, o escritor considerado como o pai da literatura contemporânea chinesa publicado pela Ed. Carambaia nesse ano e pela primeira vez reunindo todos os contos, de diferentes fases. A primeira fase chamada: o Grito, que inclui o conto Diário de um Louco. A segunda fase chamada de Hesitação, a terceira de Histórias Antigas Recontadas.

Lu Xum viu entre 1881 e 1936, foi reconhecido do um grande escritor por Mao Tsé-Tung, que o considerou um verdadeiro sábio. Esse reconhecimento, no entanto, gerou algumas confusões para o autor e uma aproximação com o Mao que só foram desmistificadas recentemente.

O estilo de escrita não nos permite saber se são contos totalmente ficcionais ou crônicas que relatam o cotidiano de seu povo. São profundos e cheio de humor, mesmo naqueles que relatam uma tragédia. Retratou a alma chinesa de um modo lúdico e lúcido.


O som do rugido da onça

Micheliny Verunschk 

Micheliny Verunschk, pernambucana nascida em 1972, já foi várias vezes premiada nacional e internacionalmente. Escreve essa poesia — esse livro não é um romance, tem que ser lido como poesia— ainda que tenha toda a narrativa de um romance. Baseado em ampla pesquisa distribuída em várias camadas: antropológica, linguística, etnológica, entre outras.

 O que impressiona é a narrativa de um sofrimento em tal profundidade que é impossível não se comover.  Como os poetas, ela nos fala do universal através do relato de uma ou duas vidas. Um percurso de morte e sofrimento que transforma rios, florestas, oceanos em cemitérios e toda a revolta e a carga poética sustentada no dorso da menina onça.

Sem querem psicanalisar o texto, que é muito maior que qualquer interpretação que se possa fazer, trago um trecho em que vi aproximações com o conceito de Winnicott de Espaço Potencial. Em vários momentos ela transita entre a ilusão e os fatos históricos. Brinca com o tempo e o espaço, sem discriminação, passado e futuro, floresta, Munique, navios se entrelaçam e se separam sem maiores explicações. Um jogo de sutileza, delicadeza e certamente muita dedicação.

Um aperitivo:

A história é mestre do futuro, mas também do presente, sussurra Martius para o combalido Spix a quem abraça, emparelhando-o ombro a ombro, (p.69)

Escuta só, ruindade não acaba, não, ela se estende, encompridando, jauá, jauá. Por isso que eu quis mostrar isso pra tu. Pra que mecê, tu não se esqueças. E vou te mostrar ainda mais coisa. Mas agora descansa, que a viagem é por demais longa.  Vou levar e, quando tudo se der por findado, se tu quiser vou levar mecê pra Maloca das Onças.

(p.137)


Erva Brava

Paulliny tort

Supreendentemente, há poucos dados biográficos sobre Paulliny Tort. Jornalista, nascida em Brasília onde defendeu seu mestrado em comunicação e sociedade. Seu primeiro romance – Allegro ma non tropo – foi semifinalista do Prêmio Oceanos em 2017. Em uma entrevista conta que estabeleceu uma meta de escrever 700 palavras por dia, o que nem sempre cumpre. Durante o dia, cuida do filho e das coisas da casa, depois das 22horas recolhe-se em seu escritório e lá escreve.

“Erva Brava” é um livro de contos – recebeu prêmio APCA de 2022- que permite uma leitura em camadas muito diversas, desde denúncias sobre o atentado constante ao meio ambiente, passando uma antropologia do homem do interior do Brasil. O mundo que Tort relata- o mundo de Buriti Pequeno, personagem que atua em todos os contos tanto da exterioridade quanto da interioridade – fala de um feminino primordial, uma mulher que conhece as ervas, parteira e abortadeira, de um rio que apodrece. O mundo milagreiro do sertão, que é não só singular, pois atravessa a fronteira, falando do homem e da mulher no mundo. E, nesse sentido, apenas nesse, a narrativa se aproxima da narrativa Roseana, pelo menos no meu entender.

Um trecho do conto Santíssima, para degustar e ficar com vontade de comer tudo.

Como sei escutar os suspiros das comadres, as palavras de cansaço, os gritos delas nos descampados. Aqui nessas distâncias, as mulheres falamos com os passarinhos, com os bois, com as porcas, bichos de curral. As pessoas estão muito longe, à casa mais próxima não se chega sem caminhar um bocado, sem atravessar pedra, pó e estrada. Mas, quando as comadres chamam, eu vou.

(p. 46)


A ficção à beira do nada

Jacques Rancière- João Guimarães Rosa

Um livro pequenininho, mas de uma densidade atroz. Li e reli e sei que muitas coisas não foram compreendidas. Quem é Jacques Rancière? Um filósofo francês que se atreve a falar do nosso Rosa. Nascido na Argélia em 1940, formou-se em filosofia pela Universidade Paris VIII. Veio para o Brasil, casou-se com uma brasileira e, após seu primeiro contato com Rosa em 1967, transformou-o em seu autor de cabeceira.  

Rancière parte da poética aristotélica até chegar ao romance moderno, no qual a causalidade não é parte da narrativa e a valorização do sujeito comum e do cotidiano é o centro da narrativa.  Para ele, ninguém conseguiu atingir esse ápice melhor do João.

Faz uma análise teórica e cria o conceito de ficção à beira do nada, das bordas do ficcional, abolindo a fronteira entre a razão dos fatos e a razão ficcional.

Difícil , denso, mas imprescindível .


Pequena coreografia do adeus

Aline Bei

Aquele que não caminhou por seu passado/
Não o escavou/ não o comeu/ não sabe
O mistério que está por vir

Juan Gelman
(tradução minha e livre)

Uma viagem ao passado de Júlia pois, como diz o poema de Gelman com o qual a autora abre o livro, só devorando e escavando o passado podemos ter uma chance de ter um futuro- uma temporalidade que se constrói com a narrativa.

O livro nos prende pela fluidez da escrita sem perder a profundidade. É quase uma arqueologia de um ser humano que não soube o que é o amor materno incondicional, mas que consegue sobreviver e se recria através da arte, da literatura. E certamente, as escavações dos relacionamentos.

Aline Bei é paulista, estudou na PUC/SP e vez Artes Cênicas no teatro escola Célia Helena. Premiada várias vezes com seu primeiro livro-O Peso do pássaro morto, lança em 2021 o segundo. Muito se pode falar sobre o conteúdo e a forma como o livro se organiza, mas deixo para que vocês descubram a sutileza e o imbricamento da forma e da narrativa.

Uma pequena “ouverture” para dar mais apetite para leitura.

eu levantei timidamente

a minha boneca Nádia M

imaginei que era o dia do batismo dela.

eu não queria ser uma mãe como a minha, gostaria de ser

mais parecida com a mãe da Tetê. Por isso fiquei olhando

o vento agraciar o cabelo da dona Sandra e também as

folhas do seu jornal.

depois levantei o rosto

e deixei que o vento agraciasse

a minha vida

estava fazendo nascer

uma boa mãe

em mim. (p. 11)


O avesso da pele

Jeferson Tenório

Nascido no Rio de Janeiro, Tenório habita no Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, onde dá aulas de literatura.  Estreia com o romance “O beijo na parede”. “O avesso da pele” é seu primeiro livro publicado pela Companhia das Letras. É considerado um dos grandes concorrentes para o prêmio Jabuti com essa publicação.

Tenório, nesse livro, costura um processo de identidade de um personagem negro, que tem o pai assassinado e o próprio autor o aproxima de Hamlet. Todo um processo de construção e identificação da própria negritude e do racismo velado na sociedade brasileira.

 O livro é, em grande medida, um diálogo entre o fantasma do pai e o filho, construídos a partir dos objetos deixados pelo pai – podemos até afirmar, usando uma terminologia de Gilberto Safra, dos objetos líricos que Pedro encontra na casa do pai.

Um petisco para estimular a degustação dos leitores:

Você simplesmente não sabe como sobreviveu à escola, primeiro como aluno, depois como professor. Não sabe como aguentou todas aquelas situações constrangedoras e violetas que a escola proporciona a todos que fazem parte dela. Entretanto, nesse mundo escolar havia uma hierarquia de chateações. Para você, a reunião com os pais estava no topo, nada se comparava às horas perdidas com aquilo. Os atendimentos aconteciam pelo menos quatro ou cinco vezes por ano. A reunião com pais é quando você abre a porta de um manicômio, você dizia. É quando você se torna uma espécie de psicólogo ou psiquiatra, não dos alunos, mas dos pais.  (p. 129)


Doramar ou a odisseia

Itamar Vieira Junior

Itamar ficou conhecido por seu livro Torto Arado, um livro com a força das questões atuais em um meio ambiente pouco ou nada urbano, mas abordando temas absolutamente universais.  Agora Itamar Vieira Junior nos faz mais uma oferenda — Doramar ou a Odisseia — um livro de contos que estão conectados por fio sutil que transita entre o visível e o invisível. Pouco precisa ser dito, o autor já se firma como um dos grandes escritores da língua portuguesa. Uma pequena degustação desse banquete que é o livro:

Caminhei  por muitas luas cheias, sob o sol de fogo, minhas mão estavam sujas, minhas vestes rasgadas, destruídas, meu cabelo embolado, como um novelo, sem fio que fosse um caminho para desatar, meus seios amarrados com uma teia de palha de buriti, a pele corada em todos os cantos, com cascões negros de sangue seco, os pés com os ossos rachados e com terríveis feridas; eu manejava as ervas que encontrava no meio da mata e fazia unguentos com as poças d’água, com a lama de qualquer resquício de frescor, com ervas vivas e verdes como minha avó me ensinou, fazia tantas coisas, passava minha saliva também para curar minhas dores,… (p.35- do conto chamado Alma)


Detalhe menor

Adania Shibli

Detalhe Menor é um feliz lançamento da Ed. Todavia. Adania uma escritora palestina já recebeu vários prêmios. Vive entre Jerusalém e Berlim. O livro relata a tomada/conquista do deserto de Neguev. Uma jovem palestina faz uma enorme peregrinação por Israel atrás de documentos que revelem a verdadeira história dessa ocupação.

A secura de sua narrativa, densa e arrastada caminha par e passo com a história relatada. Escrito de forma primorosa e ainda assim de leitura lenta e arrastada. O apodrecimento da perna de um oficial caminha ao lado da própria história, metáfora que aterroriza.

O livro alterna uma narrativa de um olhar externo, como se tivesse sendo filmado por uma câmara.  Por outro lado, a descrição dos sentimentos pessoais da personagem principal que se liga diretamente com O detalhe menor- mas, esse você vai precisar ler para descobrir. As descrições do deserto são esplendorosas e valem a pena. Se eu fosse cineasta transformava esse livro em um filme. Um pequeno trecho como degustação:

Nada se movia, exceto a miragem. Imensas áreas ermas se sucediam em direção ao horizonte, estremecendo em silêncio sob seu efeito, enquanto a luz ofuscante do sol da tarde quase apagava os contornos das pálidas colinas de areia. Os únicos detalhes visíveis eram seus limites vagos, que se desdobravam, sem rumo, em encostas e curvas bifurcadas. Aqui e ali, apareciam sombras alongadas de arbustos secos e de pedras que salpicavam as colinas. Apenas a vasta superfície do deserto seco do Neguev, sobre a qual repousava o calor sufocante de agosto. (p.05)

Dez dias no manicômio

Nellie Bly

Apesar de não ser um lançamento e nem mesmo um romance, esse livro — ou podemos dizer essa reportagem — publicado pela jornalista Elizabeth Cochrane Seaman, sob o pseudônimo de Nellie Bly, no jornal The World, que à época tinha como proprietário Joseph Pulitzer, é um relato pungente, para usar um termo fora de moda, porém muito apropriado nesse caso.

 Elizabeth nasceu na Pensilvânia no dia 05 de maio de 1864. Em 1885, muda-se de estado; o relato foi publicado em 1887, contando todas as atrocidades do Hospício na Ilha de Blackwell, em Nova York.

Seu relato é feito com o olhar leigo, não preocupado com questões diagnósticas, apenas em denunciar um tratamento pouco humano e humanizado recebido pelas mulheres internadas no hospital. A escrita é direta e sem rodeios ou floreios, mas profundamente comovente e desvela claramente a revolta da autora, numa época que ainda não se cogitava qualquer luta antimanicomial. Elizabeth foi uma precursora em muitos sentidos.


O cavaleiro inexistente

Ítalo Calvino

Nascido em Cuba e criado na Itália, Ítalo Calvino enfrenta a Segunda Grande Guerra com apenas 16 anos de vida. Filho de intelectuais que se dedicavam ao estudo das ciências agrárias, hesita em seguir carreira científica na mesma área dos pais.  Em 1947, ainda muito jovem, destaca-se como escritor talentoso no movimento neorrealista italiano. Escreve contos, romances e ensaios.

A literatura sempre foi uma boa fonte de inspiração para a Psicanálise. A leitura de romancistas que nos falem do ser humano na contemporaneidade traz um ar novo para o cotidiano do consultório, além do prazer da própria leitura. Calvino, em seu romance “O Cavaleiro Inexistente”, publicado em italiano em 1959, é um destes exemplos. Após 44 anos continua tão atual. Ao lê-lo, rapidamente, identifiquei traços comuns entre suas personagens e alguns pacientes, algumas pessoas ligadas ao nosso cotidiano e, por que não, alguns em mim mesma.

O Cavaleiro de Calvino faz parte do exército de Carlos Magno, que ao fazer a vistoria de praxe em seus soldados tem por hábito levantar o elmo para ver seus rostos ao chegar em Agilulfo se depara com uma armadura branca, impecável, e ao levantar o elmo não encontra um rosto, mas um vazio. Há somente uma armadura, sem recheio, sem humanidade. Um Cavaleiro que “Não existe”, mas guerreia. “Não existe”, mas tem fé. Outro personagem muito encontrado nos dias de hoje é uma freira que relata a guerra e conta à história amorosa de Agilulfo, mas ela nunca foi à guerra e nem conhece o amor. Estes não são os únicos personagens interessantes, de uma trama recheada de paradoxos.

 Há mais, muito mais.  Porém não haveria de ser eu a impedir o leitor de fazer suas próprias associações. Este seria um crime imperdoável. No entanto, ao acabar de lê-lo fiquei com vontade de rever, de ver aquilo que já tinha visto: “Dom Quixote de La Mancha”. Diferentes?! Talvez. De épocas diferentes? É o que parece, mas com um cerne em comum. O clássico e o atual? Questões de tempo? De lugar? Sem respostas, por ora.

Além de romances, Calvino, pouco antes de sua morte, foi convidado para fazer algumas palestras em Cambridge, nos Estado Unidos.Selecionou para elas seis temas que considerava relevantes para a estética do século XXI. Escreveu 5 ensaios interessantíssimos que ficaram como legado de um curso nunca ministrado.

Outras obras do autor: As cidades invisíveis (1972), Palomar (1983), A trilha dos ninhos de aranha. (19 47).

Ítalo Calvino “O Cavaleiro Inexistente” (19). Companhia das Letras.


Guerra de Gueixas

Nagai Kafu

Nagai Kafu nascido Nagai Sokichi ficou conhecido pelo seu pseudônimo Kafu. Em 1879 vinha ao mundo e o deixou em 1959. Viajou o mundo, morou na nos Estados Unidos e na França. Retorna para o Japão em 1908 carregando em sua bagagem influências importantes dessas literaturas.

Na sua biografia consta que desde menino se interessou literatura e cultura japonesa e chinesa tradicionais. Escreveu vários contos e deixa uma obra vasta.

Guerra de Gueixas foi publicado pela primeira vez em japonês em 1918. Em inglês Rivalry Geisgha foi título desse livro. Um dos temas preferidos por Kafu é a vida das gueixas e prostitutas. Um livro que em sua época foi censurado. Trás a história mais realista da vida de uma gueixa e desmistifica a ideia de uma vida glamourosa divulgada no Ocidente. A trama desse livro mostra a posição da mulher no Japão de forma escancarada, e da mulher de um modo geral de forma mais sub-reptícia, principalmente no final do século XIX até o XX.

A poética e a estética de Kafu apesar de influenciadas principalmente pelos franceses, não nos esqueçamos que ele traduziu para o japonês Emile Zola, não perde a essência da cultura Oriental.

  E pequeno petisco:

No inverno, os rouxinóis -do-japão e as lavandeiras tomavam o lugar dos mosquitos rajados e vinham cantar à sombra do matagal. (…) No verão, quando o arroz selvagem floria, os vagalumes vinham pousar nas cortinas de bambu, como uma chuva de luz. No outono, ele se sentava à escrivaninha e ficava ouvindo o som das folhas dos caniços golpeadas pelo vento. (p.141)

Tanta sutileza é entremeada com descrições bem duras da vida das gueixas.


Antologia Poética

Marly de Oliveira

Eu nunca tinha ouvido falar de Marly de Oliveira. Ela me foi um presente inusitado que chegou por meios muito tortuosos. Um amigo, Rogério Santos, nos apresentou um artista plástico -Marcos Lopes que foi uma incrível descoberta e Marcos Lopes sem nenhuma intenção de fazê-lo me apresentou Marly de Oliveira, que foi uma grata surpresa. Marly, além de seus predicados de poetisa e escritora, foi casada com João Cabral de Mello Neto, organizador dessa Antologia. Um trecho do que ele diz na contracapa do livro:

Antes de conhecer pessoalmente Marly de Oliveira conheci sua poesia. Mesmo sendo de outra geração eu a registrei, em primeiro lugar pela materialidade da linguagem, pela capacidade de objetivação. Em segundo lugar, pela capacidade de construir, tanto o poema longo como o poema curto, sempre mantendo alto nível intelectual.

O lançamento não é recente, mas ainda permanece significativo Poesia do real e com jeito de fala comum.

Pior que o cão é sua fúria,

pior que o gato é sua garra,

pior que a sanha de ferir

a que     se esconde

sob feição de amor.

Pior que a vida é a não-vida

do que se faz espectador;

nem mergulha, nem nada, nem conhece

o mar fundo:

está sempre à beira da estrada. (p.142)


Contos da Palma da mão

Yasunari Kawabata

Este livro também não é um lançamento recente. Sobre Kawabata: Yasunari Kawabata, nasceu em 14 de junho de 1899, recebeu o prêmio Nobel de literatura em 1968 pelo seu livro “Bando de Pássaros Brancos”, suicidou-se no dia 17 de abril de 1972, na estância de Zushi, Japão. Kawabata não se conformou com o fato de Mishima ser ignorado para essa premiação, o que aconteceu evidentemente por motivos políticos.

 Não me canso de lê-lo. Sua escrita tem o caráter de uma renda finíssima e preciosa. Esse livro é um livro de contos, mas enquanto estava lendo me dei conta de que deveria lê-lo como poesia. Contos alguns bem curtos, outros um pouco mais longos, sempre com um quê fantástico e de mistério. A lógica racional, tão ao gosto dos franceses, não nos ajudará nessa leitura.


Copo vazio

Natalia Timerman

Natalia Timerman nasceu em 1981, formou-se em medicina e fez psiquiatria na UNIFESP. Mestre em Psicologia e doutoranda em Literatura na USP. Em paralelo, se dedica à escrita de romance. Nesse livro, relata uma mulher que encontra um homem em um site de encontros e vive com ele um romance tórrido e apaixonado, por dois anos. Parece um cara perfeito, só que de repente, aparentemente do nada, ele desaparece sem dar explicações.   Deixa a personagem no vácuo.

A escrita é fluida e bem articulada, jogando com o tempo passado e presente. O tema parece banal, mas a descrição da vivência emocional de alguém abandonado sem maiores explicações é bem realista. Muitas mulheres já viveram algo senão igual, bem parecido.  O livro aborda a erotização da dor e o uso do álcool como um entorpecente.


Os carregadores de água

Atiq Rahimi

Atiq Rahimi nasceu em Cabul, em 1962. Estudou no colégio franco-afegão, época em    que frequentou o centro cultural francês da capital afegã onde conheceu o cinema    francês e encenou algumas peças dramáticas. Durante a guerra civil no início dos anos 1980, deixou o seu país e, em 1985, obteve estatuto de refugiado político na França, onde vive desde então. Formou-se em letras e estudos cinematográficos nas    Universidades de Rouen e La Sorbonne Nouvelle. Apesar de também escrever em    francês, sua língua literária é o dari, variação do persa falada no Afeganistão; porém, ele mesmo faz a tradução para o Francês.

Francês e persa são duas línguas de etimologias muito diversas, sendo o francês uma língua latina e com um caráter muito racional e lógico. Afinal, a França é a mãe da filosofia racional enquanto o alemão poderíamos dizer que é o pai — ou quem sabe seria o inverso. O persa, no entanto, é uma língua que nos deu vários exemplos de sua ligação com um transcendente poético e metafórico. Interessante poder conhecer um escritor que transita entre essas duas formas de se comunicar.

A escrita de Rahimi me parece assentada na visão metafórica de mundo da tradição persa. Nesse livro, faz dois relatos em paralelo: um de um afegão que fugiu para França e está fugindo para Amsterdã de uma vida que considera falsa. Deixa uma carreira e uma família estruturada para buscar algo que ainda não sabe bem o que é, quer algo mais genuíno.  O outro é um afegão que permanece em sua terra e sua missão é carregar água. Só ele sabe e consegue chegar na fonte originária. Atende a sua comunidade e a sua mesquita. Cumpre todas as suas obrigações, inclusive cuidar da esposa de seu irmão que foi para a guerra. Luta com o conflito de sua sexualidade, com a qual não sabe o que fazer. Atiq, além de um escritor sensível e criativo, é um cineasta primoroso. Vi seu filme A pedra da Paciência e acho que vale muito o investimento.

Herege!

Ao diabo, seu pau! Ele o arranca do sono, o suja, o oprime, o faz blasfemar, enche-o de uma angústia que desperta sua asma, impede-o também de se levantar imediatamente para fazer suas abluções, rezar. Cada manhã, ele precisa esperar que o danado desse morcego amoleça.

Deixa para lá! É preciso partir às pressas, antes que o mulá saia de casa, que os fiéis e os infiéis cheguem diante da pia vazia da mesquita para se entregar às abluções. Cabe a Yûsef levar água para eles; senão, noventa e nove chicotadas nas costas. (p.21)

Você segue. Sem prestar atenção à velocidade. Mais um comportamento estranho. Você nunca ultrapassou a velocidade indicada pelas placas de sinalização, tamanho o desejo de ser até agora um bom cidadão, um bom empregado. Não apenas porque você dirigia um carro da empresa, que ainda conduz, mas pelo cuidado patético de todo estrangeiro como você, de não parecer um selvagem ignorando as regras.

As regras, por muito tempo, você viveu feliz com elas. Com todas as regras. Feliz porque acreditava que a vida não era mais do que um jogo, um jogo do acaso. (p.32)


Escute as feras

Nastassja Martin

Nastassja Martin, antropóloga francesa nascida em 1986, fez seu doutorado sobre um povo do Alasca—os dwich’in — que foi publicado em 2016 na França, mas que eu saiba não foi traduzido para o português.

Escute as feras, traduzido pela editora 34, é seu segundo livro e é um relato entre o ficcional e a realidade de suas experiências com um povo da Sibéria, uma etnia isolada e sua vivência e luta corporal com um urso, da qual ambos saem muito feridos, porém vivos. A narrativa alterna o tempo presente e as recordações que ela recupera de antes de ter seu rosto dilacerado. Algumas dessas vivências são relatadas em um registro místico da conexão de alma entre ela e o urso, baseado nas crenças dos “Even” que vivem península de Kamtchátka. Um tecido de afeto e confiança se estabelece entre ela, a floresta e o povo com o qual ela entra em contato.

A mochila de Lanna é pesada demais para ela, na medida do possível Nikolai e eu tentamos aliviá-la, dividindo sua carga, mas não temos mais espaço. Para atingir o colo, entre os vulcões Kámien e Kliútchvkou, a mais de três mil metros, apoio minha mochila sobre uma rocha, torno a descer e subo com a mochila dela. Assim vamos avançando, em etapas, a cada duzentos metros. Em que confusão eu fui me meter? (p.41)

                                                 ***   

Ao voltar do bloco cirúrgico, a dor é intensa, peço morfina pela primeira vez; assim como em todas as noites seguintes à operação, sempre que o sofrimento se torna asse insuportável. (p.45)


O livro do chá

Kakuso Okakura

O livro do chá foi escrito no começo do século XX e traz à tona toda uma reflexão sobre o jogo entre a tradição e contemporaneidade. Tema, também, abordado por Winnicott.

Apesar de abordar prioritariamente as questões do Japão, que nessa época passava por uma crise de identidade cultural, frente ao contato muito intenso com o ocidente, o livro tem um caráter universal, tendo em vista que hoje vivemos uma crise de identidade em face do excessivo contato com a tecnologia e tecnificação das relações humanas.

O trecho que vamos citar encontra-se em um capítulo, significativamente, chamado: Xícara da Humanidade.

Vamos ao nosso drink de degustação:

O chá era a princípio um remédio e se transformou em bebida. Na China do século VIII, entrou para o campo da poesia como um entretenimento refinado. O século XV viu o Japão elevá-lo à categoria de religião estética, ou seja, à de ‘chaísmo’. O ‘chaímos’ é um culto que se fundamenta na veneração da beleza em meio à sordidez dos acontecimentos diários. (p.29)


Em louvor da sombra

Junichiro Tanizaki

Em Louvor da Sombra é mais um livro fundamental para entendermos e conseguirmos nos livrar de um excesso da visão iluminista que nos assola. Nos conta sobre a busca pela penumbra na tradição oriental e o contraste com o excesso de luz no ocidente. A tensão se estabelece fincando o Japão como o ponto fulcral dessa dicotomia. O Autor revela o quanto a questão da oposição entre luz e escuridão permeia toda a cultura como um todo, desde seus costumes mais cotidianos até a produção midiática exportada para o mundo.

Essa questão, no meu entendimento, não passa desapercebida pelo psicanalista inglês Donald W. Winnicott, cuja obra fala sobre os excessos interpretativos da Psicanálise. Espero que o leitor possa fazer suas próprias conexões.

Como sempre, um pequeno aperitivo:

Por que essa propensão a busca a beleza nas sombras é tão forte apenas entre os orientais? Houve um tempo em que a eletricidade, o gás ou o petróleo eram desconhecidos também no Ocidente, mas até onde sei essa parte do mundo nunca tendeu a apreciar o escuro. Desde tempos imemoriais, os fantasmas japoneses, não têm pés, enquanto os ocidentais, segundo ouço dizer, têm pés mas são transparentes. Conforme se observa por esse exemplo tão trivial, um, negrume cinzento está sempre presente em nossa imaginação, enquanto na dos ocidentais até os fantasmas são claros, transparentes como vidro.  (p.50/51)

Inéditos e Dispersos

Ana Cristina Cesar

Para não dizerem que não falei de poesia. Muitos poetas deveriam estar nessa coluna, mas escolhi Ana Cristina pela imensa surpresa que me causou. Li esse livro há alguns anos e não me disse nada. Deixei de lado. Nos últimos dias resolvi reler alguns poemas e eis o grande estarrecimento- descobri Ana Cristina Cesar. O que aconteceu? Acho que eu não estava pronta para compreendê-la em sua angustia, dor e sofrimento. Poesia não se lê com a mente, só com o coração é possível acessar suas interioridades. Pequenos fragmentos que poderão instigar alguns a entrar em contato com essa poetisa incrível.

Enquanto leio meus textos se fazem descobertos. É difícil escondê-los no meio dessas letras. Então me nutro das tetas dos poetas pensados no meu seio. (p.95)

Estou
trêmula porque não cabe no tempo
trêmula — porque não cabe — no tempo
que não te oferto
habito a casa de quando em quando
meu bem: a visão da janela escapa
não te oferto
Não, não é diante da janela
que falo
            Não é diante da janela que te falo.
             Não recito para os pássaros.
Não é o que se diga. ?(p.191)

Correspondência entre Kawabata e Mishima 1945-19

Trocas literárias e afetivas através de cartas envoltas em delicadezas entre dois veneráveis escritores japoneses – Yasunari Kawabata e Yukio Mishima.

Mishima, nascido em 14 de janeiro de 1925 e registrado com o nome de Kimitake Hiraoka, escreveu vários livros e recebeu vários prêmios importantes. Em 1941, começa a se utilizar do pseudônimo Yukio Mishima quando publica na revista Cultura Artística sua obra “Floresta em plena florescência”.

 Foi cogitado para receber o Prêmio Nobel; porém, é provável que não tenta sido agraciado por suas posições políticas no pós-guerra a favor do Imperador e em defesa das tradições da cultura japonesa. No meu entender, Mishima foi mal compreendido em função das tensões políticas à época. Foi amigo e admirador de Kawabata, que conheceu pessoalmente em janeiro de 1946, seguindo-se a partir de então uma rica correspondência e um contato fecundo para a literatura mundial e japonesa.

Yasunari Kawabata nasceu em 14 de junho de 1899, sendo, portanto, 26 anos mais velho que Mishima. Certamente foi uma forte influência literária e possivelmente representou uma importante figura paterna.

Alguns pequenos trechos para despertar sua curiosidade na troca de correspondência entre dois gigantes na literatura japonesa e no meu entender da literatura mundial:

De Kawabata

Para Mishima:

Carta de 11 de dezembro de 1959

Pretendo no ano que vem, alojar-me temporariamente em Kyoto para apreciar por algum tempo a região. Tenho também o projeto de se for possível, experimentar escrever sobre os tempos da Nova coletânea de poemas antigos e modernos ou sobre o período Higashiyama, mas você sabe como sou preguiçoso. (p. 143)

De Mishima

Para Kawabata

Carta de 18 de dezembro de 1959

Eu havia ouvido de Shimanaka que o senhor pretendia ir à Kyoto a fim de coletar material para uma obra da Idade Média. Como o senhor vem dizendo desde o fim da guerra que gostaria de escrever uma história do período Yoshimasa, aguardo com ansiedade, contando os dias para quando poderei ler essa sua obra. (p.144)


Vida à venda

Yukio Mishima

Mais um lançamento inédito- um romance de Mishima- Vida à Venda. Comemoração do cinquentenário da Morte de Yukio Mishima, que foi batizado como o nome de  Kimitake Hiraoka.

Um livro entre   o trágico e o cômico com pitadas surreais em uma estrutura muito fluida e elegante. Mishima conta a história de Hanio Yamada, decepcionado e sem encontrar mais sentido no viver. Ao fracassar em cometer suicídio, o personagem principal coloca um anúncio no jornal: Vida à venda. As histórias se desenrolam em uma narrativa que me fez lembrar das Mil e Uma Noites, na qual vários personagens se sucedem como pretendentes a compradores da vida colocada à venda.  A história de cada um se enrosca com a do outro tecendo uma narrativa entre o possível e o insólito. Além disso, é interessante notarmos como o personagem se mistura e identifica com o autor. Ou como o autor se projeta no personagem, já que não podemos esquecer que o próprio Mishima cometeu suicídio.

Um petisco para abrir o apetite:

“Notícias diárias, rotineiras sem muita novidade, mais pareciam carimbadas.

Nada daquilo lhe despertava interesse.” (p.10)

“Malograda a tentativa de suicídio, Hanio via abrir-se diante de si um mundo maravilhosamente livre, mas um tanto vazio. “ (p. 15)

Acudia-lhe a sensação de que a sequencia dos dias, que julgara estender-se à eternidade, tinha sido de súbito truncada, e desse dia em diante tudo era possível.


Assombrações

Domenico Starnone

Domenico Starnone nasceu em Nápoles em 1943; escreveu inúmeros romances e, possivelmente, seu livro de maior sucesso foi Laços. Escolhi este por ser a última publicação do autor até agora e aqui no Brasil.

A narrativa se passa sempre do ponto de vista de um único narrador, um senhor com mais de setenta anos, sentado em sucesso como ilustrador de livros. Duas tarefas se entremeiam ao longo do livro: desenvolver uma ilustração para um livro de Henry James e cuidar do neto que tem quatro anos. Duas tarefas que são permeadas pela questão do envelhecimento e das dificuldades nas relações familiares.

Em algum momento da narrativa, um evento entre o neto e o avô lembra a crueldade de A volta do Parafuso, outro livro  de Henry James,  autor que o personagem se debate para conseguir ilustrar, gerando uma área nebulosa e tensa,  que cria a atmosfera na qual os dois autores ficam confundidos.


O pássaro secreto

Marilia Arnaud

Uma história entremeada por triângulos, na qual muito facilmente podemos escorregar para uma análise de questões edípicas, que só uma leitura superficial e reducionista poderia aceitar.  Mas nada é tão obvio como pode parecer.

Marilia Arnaud vai mais fundo nas emoções humanas e faz um mix muito próprio e sob uma cobertura enganadora. A narrativa é fluida e instigante. A escrita é clara e precisa.

“‘Só levanta da mesa se comer tudo’, eu devorava o que estivesse no prato e repetia, quando possível. Meu pai gracejava da minha fome, ‘de morador do Polígono das Secas’. Mas agora me falta disposição até mesmo para experimentar o que minha mãe se esmerava em preparar especialmente para mim. Regurgitava todo e qualquer alimento que era obrigada a ingerir. O sangue da morta manchava de encarnado o pão, queijo e o leite do café da manhã, o purê e o bife acebolado do almoço. Pedaços da carne sem vida boiavam na sopa de legumes servida no jantar, e os olhos de pedra me espiavam de dentro do mingau de aveia ou da vitamina de banana com farinha láctea que, antes de deitar, minha mãe levava para mim à cama.”


A Origem da água

Ana Cristina Braga Martes

Vou abrir esse texto com um lugar comum, muito a contragosto, mas foi a única coisa possível de se dizer- esse é um livro que não pode deixar de ser lido por todos os que gostam de boa literatura, especialmente por aqueles que transitam na área da Psicanálise.

É o primeiro romance de Cris Martes, mas já desvela a imensa potência de sua autora. Baseado na vida de Maura Lopes, mas sem se pretender uma biografia em sentido literal, a autora transita entre a realidade e o ficcional com uma segurança incontestável.

Ana Cristina Braga Martes- Cris Martes como gosta de ser chamada, nasceu em Varginha, Minas Gerais, morou em São Carlos, Boston nos Estados Unidos e Londres. Doutora em Ciência Política pela USP e pela MIT/EUA, deu aula na Fundação Getúlio Vargas Em algum momento, decidiu seguir a vocação da escrita com uma narrativa singular e sem modismos  — e talvez , nesse sentido, ela possa ser considerada uma Outsider.


A Realidade Não é oque parece

Carlo Rovelli

A realidade não é o que parece. (A estrutura elementar das coisas). Ed. Objetiva, 2014

Carlo Rovelli é um físico italiano. Nasceu em Verona de 03 de maio de 1956. Já trabalhou na Itália, Estados Unidos e atualmente está na Universidade Aix-Marselha, França. Ficou conhecido por seu trabalho relacional da mecânica quântica. Tem vários livros instigantes.

Um aperitivo para abrir o apetite: (da Introdução)

“Somos obcecados por nós mesmos. Estudamos nossa história, nossa psicologia, nossa filosofia, nossa literatura, nossos deuses. (…) Acho que gosto da física porque ela abre uma janela e olha para longe. (…)

O que vemos além da janela nos encanta. Aprendemos muito sobre o Universo. (…) Aprendemos que existem quarks, buracos negros, partículas de luz, ondas de espaço e extraordinárias arquiteturas moleculares em cada célula de nosso corpo. A humanidade é como uma criança que cresce e descobre, admirada, que o mundo não é apenas o seu quarto e o seu playground, mas é amplo, e existem milhares de coisas a explorar e ideias a conhecer, diferentes daquelas com as quais está acostumada” (p.09/10)

O livro desenvolve uma pequena história da Criatividade na Ciências, desde dos pré-socráticos até a Física Quântica. Falamos muito em criatividade do ponto de vista artístico, do viver criativo. Além de desenvolver todo uma argumentação do papel da criatividade no pensamento cientifico, Rovelli historiciza o desenvolvimento da física quântica e sua relação com os pré-socráticos, de modo simples e fácil entendimento até mesmo para os leigos.


O filósofo no porta-luvas.

Juliano Garcia Pessanha

Juliano Garcia Pessanha é doutor em filosofia, estudioso da obra de Peter Sloterdijk, sobre quem ministra vários grupos de estudo. Nasceu em São Paulo e escreve romances autorais desde de 1990. No entanto, segundo o autor, seus livros anteriores são uma escrita de Si e este seria seu primeiro romance.

Frederico, uma alma filosófica com um contato precário com a realidade, lembra o poeta Cazuza que não sabe amar. Uma escrita ansiosa com alguns recursos inéditos que podem e devem ser explorados pelo autor em novas produções. Personagens que mereciam mais espaço, como a Luna, aparecem pouco- para meu gosto. Uma história de sofrimento, pois o sofrimento não está só nas periferias. Meninos de classe média alta podem viver tanta pobreza e vulnerabilidade quanto qualquer um. E, às vezes, nem mesmo um holy man consegue aplacar tanta agonia. Essa é a história de muita pobreza de um lado e muita riqueza por outro, e nem todos conseguem acessar as múltiplas facetas embricadas nas descrição das vivências do personagem  carente  de uma apresentação gradual da realidade.


Corpo Interminável

Claudia Lage

Claudia Lage é carioca escritora, publicou o livro “Labirinto da palavra” –  ensaios- crônicas sobre a literatura e criação literária. Recebeu alguns prémios e foi finalistas de outros tantos.

Uma narrativa necessária, política no sentido mais amplo, mas nada óbvia. Uma trama tecida com a angustia do não falado. Uma história de mulheres guerreiras que, durante a ditadura, lutaram por si e por um outro mundo para seus filhos não nascidos. Denso e firme.


Eu sou um gato

Natsume Soseki

Não sei de vocês, mas eu sou simplesmente apaixonada pela literatura japonesa: Kawabata, Murakami, Mishima, entre tantos outros. No entanto, só recentemente descobri Soseki.

Soseki nasceu em Tóquio em 1867; viveu na chamada era Meiji. Faleceu em 1916 e deixou vários livros, inclusive um inacabado: Light and Darkness, que não sei se foi publicado.

Este livro é uma delicadeza. A descrição feita a partir do olhar de um gato, um gato vira-lata, de como ele se aproxima dos humanos e como os enxerga. Frases como essa valem a leitura: “Não há nada mais respeitável que o reconhecimento da própria imbecilidade(…)”