João Pedro Jávera
Um dos critérios fundamentais que orienta o trabalho de um psicanalista é a compreensão que porta sobre os caminhos pelos quais o amadurecimento humano se dá. Freud (1920) formulou a sua a partir da perspectiva: “do princípio do prazer ao princípio de realidade”. Tal perspectiva veio a ser apropriada por muitos teóricos, que a pensaram segundo uma nova chave de linguagem e especificação. O britânico Donald Winnicott é um desses, que apresentará seu entendimento da formulação freudiana por meio de um eixo relacional, ou seja, do percurso do indivíduo em sua maneira de se relacionar com os objetos.
No início da vida de um bebê, conceberá Winnicott (1987e), não lhe é possível – devido à sua estrutura precária, à sua falta de recursos, à sua extrema dependência – suportar a alteridade, ou seja, lidar com a presença ou a realidade de um outro. É a partir desta compreensão que o autor afirmará que o bebê surge sob uma condição denominada “narcisismo primário” ou, então, “onipotência primária”: apenas é possível ao ser humano começar a existir e iniciar sua jornada no mundo se ele for um deus, o criador de tudo que está à sua volta. Esse é um momento da constituição humana no qual o ambiente de cuidado tem um papel vital: respeitar tal estado de imaturidade e permitir ao bebê gozar da ilusão de ser um criador. Se isso acontece, o bebê tem a oportunidade de criar um “objeto subjetivo”, ou seja, um objeto que o faz sentir que o outro (a mãe, o seio, a figura afetiva de referência) é extensão de si. Este objeto alucinado – mas que é sentido como profundamente real para o bebê – é seu passaporte para, eventualmente, vir a tolerar alguma dose de alteridade.
Caso as demandas de cuidado sejam atendidas de maneira minimamente constante nesse delicado e exigente momento maturacional, o infante (aquele que ainda não fala) consegue alcançar a ideia de que o outro tem uma existência para além de si. É justamente aqui que o tão conhecido “objeto transicional” faz sentido para o bebê. Tal objeto é um dado da realidade, é um substituto do corpo da mãe – o que implica uma capacidade representacional, uma entrada do bebê, ainda que incipiente, no universo simbólico –, mas um objeto que ainda é revestido de muitas projeções, ou seja, é ainda fortemente carregado de sua subjetividade. Novamente, com a ajuda de um ambiente de cuidado implicado e respeitoso às suas necessidades, o bebê faz desse objeto um ponto de sustentação que o pode encorajar a suportar as frustrações inerentes à vida, consolá-lo em momentos de aflição, e que até mesmo facilitar seu adormecimento – o que implica confiança para adentrar em um estado de não controle –; enfim, o bebê adota um objeto que passa a cuidar de si mesmo.
Ao longo do processo de amadurecimento, o bebê irá se deparar com outros objetos e poderá, enfim, dissipar seu afeto, espalhar para outros objetos sua capacidade criativa, apropriadora e ampliar, assim, seu horizonte relacional. É nesse momento que o objeto transicional começa a perder seu encanto e ser relegado ao limbo (Winnicott, 1953c/2020, p. 20). O que há de enriquecedor aqui é que as coisas passam a ganhar maior realidade, ou seja, os objetos podem ser mais tolerados tal como realmente são, e sua realidade vem a se tornar fonte de lições para o bebê – “lições de objeto”, que têm um valor terapêutico para ele. Assim, a alteridade não é apenas tolerada, mas transforma a criança, à medida que as qualidades mesmas dos objetos afetam sua interioridade.
Esse percurso objetal que vai do “objeto subjetivo”, ao “objeto transicional” e que desemboca em um “uso do objeto” (destituição do objeto enquanto entidade projetada e excessivamente banhada da subjetividade da criança) é também um percurso que se inicia em uma “apercepção criativa” da realidade para uma “percepção objetiva” da mesma (Winnicott, 1953c/2020), uma descoberta da realidade das coisas e uma maior abertura à alteridade – percurso este que envolve muitos riscos, uma vez que não há mais um controle mágico da realidade, e a realidade mesma dos objetos passa a estar “solta”, passível de transformar o bebê (recomendo o filme “Lars e a garota real” (2007), que elucida esse processo de maneira bem criativa e didática).
A evolução desse percurso relacional com os objetos é infindável e tensa, já que sempre seremos atraídos pelo inédito do qual eles são mensageiros, ao mesmo tempo em que nos defenderemos da realidade da qual eles são portadores, a fim de nos protegermos de suas possíveis intervenções em nossos circuitos psíquicos (dimensão da resistência humana, discutida desde o nascimento da psicanálise); ainda assim, é possível encontrar pessoas corajosas o suficiente para se abrirem ao real e se deixarem transformar por suas qualidades. A esse respeito, tenho em consideração o filósofo coreano de Byung-Chul Han (2021), que em seu livro “Louvor à Terra. Uma viagem ao Jardim” descreve sua empreitada existencial ao tentar cuidar de um jardim de inverno, ou, como compreendo, seu “jardim das alteridades”. Uma das sessões deste é intitulada “O tempo do outro”, no qual o filósofo procura compartilhar a importância que o Jardim teve em lhe proporcionar uma saída de si mesmo, realizada quando ele pôde se “inclinar” diante do jardim, aproximar-se do tempo próprio pelo qual o Jardim se desenvolve. Ele escreve:
Desde que trabalho no jardim, sinto o tempo de um jeito diferente. Ele passa de um modo fundamentalmente mais lento. Ele se expande […] Nunca o inverno me pareceu tão longo como em meu primeiro ano de jardineiro. O jardim me afastou ainda mais um passo de meu ego. Não tenho filhos. Com o jardim, porém, aprendi lentamente o que significa o cuidado, a preocupação com o outro. O jardim foi um lugar do amor. O tempo do jardim é o tempo do outro (Han, 2021, pp. 24-25).
Han compreende que uma perspectiva terapêutica para a humanidade (tão fortemente marcada pela inabilidade em trocar) esteja na abertura do sujeito para aquilo que é “não-eu”, algo apresentado na frase do trecho acima “o jardim me afastou ainda mais um passo de meu ego”. Ao nos inclinarmos diante do outro, temos a possibilidade de realizar um movimento ek-stático, de saída de si (do grego ek “para-fora-de” e stasis “posição”) – movimento dificílimo de ser feito, mas que traz um grande alívio para o indivíduo, e cuja ambiguidade está posta justamente no fato de gerar sentimento de medo pela perda de identidade, mas também produzir descanso em relação a si mesmo, em relação à própria prisão claustrofóbica erguida para auto proteção e preservação. No mesmo livro citado, Han menciona mais uma experiência ecstática curativa, agora com a música; ele compartilha:
A música de Schubert desarma o eu como “sujeito de ação”. Ela estremece o eu e desencadeia um chorar quase pré-reflexivo, como um reflexo. Desatado em lágrimas, o eu renuncia à sua superioridade e se torna consciente de sua própria naturalidade. Chorando, ele retorna à Terra. A Terra é […] o polo oposto do sujeito que se põe absolutamente. Ela o livra de seu aprisionamento em si próprio. A consciência da natureza o libera da teimosia de sua autoposição. Nisso o eu sai, espiritualmente, do aprisionamento em si mesmo (Han, 2021, pp. 30-31).
Não seria a prática de alteridade de Han uma prática de “princípio de realidade”? Não seria ela um caminho inspirador para adentrarmos cada vez mais profundamente na percepção das coisas mesmas, e procurarmos superar o excesso de subjetividade que nos faz apenas vermos a nós mesmos no outro?
Referências:
Freud, S. Além do princípio do prazer [1920]. In: Além do princípio do prazer, psicologia de grupo e outros trabalhos. (1920-1922). Rio de Janeiro: Imago, 1969. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 18).
Han, C-H. Louvor à Terra. Uma viagem ao Jardim, (2021).
Winnicott, D. W. Objetos transicionais e fenômenos transicionais (1953c). In: O brincar e a realidade. São Paulo: Ubu, 2020.
Winnicott, D. W. A mãe devotada comum (1987e). In: Os bebês e suas mães. São Paulo: Martins Fontes (2002)