A relação com os cães no mundo contemporâneo como revelação dos fundamentos éticos do humano

Por: Matheus Beraldo

 

E eis que, em meio a um longo cativeiro, por algumas curtas semanas e antes que as sentinelas o tivessem afugentado, um cão errante entrou em nossas vidas. Ele veio um dia se juntar a esta ralé quando esta, sob guarda, voltava do trabalho. Ele vivia em algum lugar perto do campo. Mas nós o apelidamos de Bobby, de um nome exótico, como convém a um cão estimado. Ele aparecia nas assembleias da manhã e nos esperava em nosso retorno, pulando e latindo alegremente. Para ele – era incontestável – nós éramos homens [1]

 

No trecho que abre este texto, o filósofo Emmanuel Lévinas nos traz um relato de seu período de cativeiro, quando fora prisioneiro de guerra em um campo nazista. O relato do autor nos mostra que, em meio a um contexto degradante, onde a condição humana se encontra esmagada diante dos horrores perpetrados pelo regime nazista, um cão errante é capaz de preservar a dignidade humana. Curiosamente, há uma inversão: o animal fornece um olhar humano e ético — de hospitalidade, de alteridade e de respeito — a seres humanos relegados ao nível sub-humano.

Para fazer jus ao relato de Lévinas, gostaria de discutir a possibilidade de o cão ocupar, no mundo contemporâneo, um lugar fundamentalmente ético, auxiliando o ser humano a recuperar ou recordar os fundamentos éticos originários de sua condição, sendo aquele que fornece, com base em sua disponibilidade amorosa, necessidades ontológicas fundamentais ligadas ao sentido de alteridade, em meio a um cenário sociocultural contemporâneo que reverbera uma fratura ética considerável, discutida na obra do psicanalista Gilberto Safra como se tratando da fragmentação do ethos humano. Para ele (2004), o ethos — valendo-se de uma de suas etimologias — refere-se à morada; diz respeito aos diferentes aspectos que possibilitam que o ser humano more ou aconteça no mundo com outros humanos, isto é, diz respeito aos fundamentos da condição humana, sem os quais o ser humano não se constitui ou se constitui de forma precária. É possível elencar, como algumas das necessidades ético-ontológicas: a hospitalidade, o testemunho, a solidariedade, o reconhecimento, entre outros. Trata-se de condições, disponibilidades e necessidades fundamentais para que o ser humano aconteça, com o outro.

Para Safra (2010), as transformações socioculturais afetam a subjetivação do ser humano e promovem novos quadros psicopatológicos. A presença em nossa cultura da hegemonia da técnica e das hiper-realidades tecnológicas podem favorecer a emergência de situações e fenômenos clínicos nos quais se nota um desapontamento e uma perda de identificação com o humano, já que neste quadro cultural há perda e afastamento de dimensões fundamentais da condição humana. Trata-se da emergência de novas formas de sofrimento humano, não decorrentes de dinâmicas psíquicas ou sociais, mas de acontecimentos que ferem a própria fundação e constituição do ser humano, referentes, pois, ao ethos humano.

Verificamos a intensidade da solidão e privação experimentada pelo ser humano no mundo contemporâneo ao nos depararmos, por exemplo, com a criação, em 2018, de um Ministério da Solidão no Reino Unido, criado com a finalidade de se voltar ao problema da solidão no país, considerada pela então primeira-ministra britânica Theresa May como “a triste realidade da vida moderna” (JOHN, 2018). No Japão, há empresas que oferecem o serviço de aluguel de amigos e de familiares (VIEIRA, 2018). Neste mesmo país, há inclusive um nome específico cunhado para mortes solitárias, em que os corpos, após o falecimento, permanecem longo tempo sem serem descobertos: Kodokushi (JOHN, 2018).

Percebemos que, na atualidade, há um descrédito e uma decepção com o humano que se faz, na terminologia de Winnicott (1983), excessivamente objetificado, isto é, não se faz companhia, não se faz presença. Ouvimos de tutores de cães, assim como de pacientes no consultório, que em suas relações cotidianas se sentem excessivamente cobrados e demandados. As instabilidades e as exigências cotidianas, naturais ao convívio, são fonte de irritação e intolerância. Deste modo, a presença do outro é sentida como invasiva, e não como possibilidade de repouso, de companhia ou de morada. Para muitos, os cães se mostram como as únicas companhias em suas vidas.

Com tal desertificação da presença humana, os cães podem oferecer uma disponibilidade ética que permite a realização de experiências fundamentais do acontecer humano, como o cuidado amoroso, o contato corpóreo-afetivo e terno ou mesmo a comunicação silenciosa. Não à toa, a presença canina se faz notar de maneira significativa e impactante na biografia de muitos; ouvem-se frequentemente, em nossos dias, relatos e narrativas de pessoas cujas vidas estão marcadas significativamente pela presença deste animal; taisessoas, por meio da companhia canina, tem a possibilidade de atravessar momentos conturbados de sua existência, como divórcios, perdas de parentes próximos, tentativas de suicídio, depressões e traumas. Muitos, de uma forma mais contundente, conseguiram estabelecer um horizonte de sentido para suas vidas a partir do cão. Em muitos casos, ele o único ser capaz de fornecer companhia e testemunho diante destes momentos de instabilidade emocional. A enorme e variada quantidade de relatos referentes à presença significativa do cão poderia ser condensada em frases facilmente identificáveis no cotidiano, tais como: “meu cachorro salvou minha vida”, “não sei o que seria de mim sem meu cachorro”, entre outras. O cão já é referido, por muitos, como membro da família (BECK; KATCHER, 1996). Frequentemente, esta proximidade é escancarada, quando ouvimos relatos em que o cão é tido como “filho” ou é colocado em um lugar que ultrapassa aquele de um mero animal.

É possível observar, a partir de relatos clínicos e do cotidiano, que experiências inter-humanas fundamentais passam ser vividas, paradoxalmente, com o cachorro. Estamos diante de categorias éticas constitutivas: o cuidado, a ternura, a disponibilidade empática e afetiva, a presença, o testemunho e a hospitalidade. O cachorro é aquele, por exemplo, capaz de ofertar cuidado e que permite que com ele se tenha a experiência fundamental de cuidado-amor, na qual o ser humano vivencia o sacrifício ou renúncia de si em direção a um outro. O cão se faz lar ou família, capaz de receber afetuosamente um humano que retorna à sua casa. É aquele também que, em sua disponibilidade empática originária, oferta companhia e testemunha as dores e as aflições humanas no cotidiano.

Vemos que diferentes experiências éticas são possíveis com os cães. Se, por um lado, essa possibilidade aponta para a preservação do ethos humano, ainda que deslocado para o campo canino, constatamos outrossim um desencanto e uma desesperança com o humano, provocado pela erosão ou pela desertificação da presença ou da companhia. Ouve-se com frequência a forma desencantada e desesperançada com que o ser humano se refere a seu semelhante. Para muitos, o ser humano na atualidade é um ser egoísta, preocupado apenas com seus interesses pessoais — sobrepujando os interesses comunitários — sem tempo para se relacionar com o outro. Ao entrar em contato com tutores de cães, não é raro afirmarem que em diversos momentos preferem a companhia canina à companhia humana.

Diante do desencanto com seu semelhante, a aproximação ou a amizade com humanos muitas vezes só é possível por intermediação do cão, como no caso dos passeios, quando a aproximação ou a interação com o outro tutor se torna mais viável, se comparado a um passeio sem a presença do cão. Comumente, ouvimos que se recorda mais dos nomes dos cães do que dos próprios tutores do animal. Muitos reconhecem ainda, com certo sentimento de culpa, que fornecem ajuda financeira para instituições ligadas ao resgate de cães abandonados ou outras causas ligadas aos animais, mas não investem da mesma forma em programas de assistência para pessoas em situação de rua ou para pessoas com necessidades psicossociais. Em um nível ainda mais contundente, muitos afirmam – referindo-se a si próprios ou a amigos ou colegas próximos – que o falecimento de seus cães lhes trouxe maior pesar do que o próprio falecimento de parentes.

Constata-se, assim, diante de um horizonte sociocultural excessivamente tecnificado e virtualizado, o qual expressa em sua maior parte a perda da corporeidade e a deterioração ética da relação humana e da convivência, que o ser humano, em sua demanda originária pela presença afetiva, terna e hospitaleira do outro, encontre no cachorro a alteridade, e tenha com o animal a possibilidade de se abrir a experiências originárias, como a maternidade, a amizade e o amor.

 

Referências

 

BECK, A.M.; KATCHER, A.H. Between pets and people: the importance of animal companionship. West Lafayette: Purdue University Press, 1996.

 

JOHN, T. How the world’s first loneliness minister will tackle ‘the sad reality of modern life’. Time, 25 Abr. 2018. Disponível em: https://time.com/5248016/tracey-crouch-uk-loneliness-minister/. Acesso em: 13 nov. 2020.

 

LÉVINAS, E. Difficile liberté — essais sur le judaisme. Paris: Albin Michel, 2010.

 

SAFRA, G. A po-ética na clínica contemporânea. Aparecida: Idéias e Letras, 2004.

 

SAFRA, G. A violência silenciosa: o eclipse do ethos humano no mundo contemporâneo. inTolerância, São Paulo, v., n.1., p.41-51, 2010.

 

VIEIRA, A.L. Japão: empresa aluga amigos para equilibrar ‘desvantagens sociais’. R7, 23 Dez. 2018. Disponível em: https://noticias.r7.com/internacional/japao-empresa-aluga-amigos-para-equilibrar-desvantagens-sociais-23122018/. Acesso em: 14 dez. 2021.

 

WINNICOTT, D.W. Comunicação e falta de comunicação levando ao estudo de certos opostos. In:____. O ambiente e os processos de maturação — estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional. Porto Alegre: Artmed, 1983. P. 163-174.

 

[1] E. Lévinas – Difficile liberté- essais sur le judaisme. p.234 nossa tradução)

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