Falando de Cura.
por Cris Gomes
E toda e qualquer contribuição será muito benvinda, já que não temos nenhuma pretensão de esgotar o assunto e de estarmos assentados na verdade.
A questão da Cura
Na Psicanálise fundada por Freud, a teoria se assenta no contato com a neurose, no sujeito em luta com conflitos pulsionais e batalha para manter o reprimido, reprimido. Curar para Freud implica em abstinência, em aceitação e confrontação da realidade estabelecida.
Uma das grandes viradas dadas por Winnicott se refere à concepção de cura.
Winnicott diz em “Cura” (18 de outubro de 1970[1]) que as palavras estão enraizadas etimologicamente e que cada palavra tem uma história própria, cada uma traz um registro no tempo próprio. Como a humanidade fincou raízes e estabeleceu lugares de convivência e de troca, assim é com a palavra.
De tempos em tempos, elas buscam outros lugares para se alojar e, como os povos nômades, mudam seus significados; às vezes, habitam dois territórios simultaneamente. Cura é um vocábulo do tipo que se inicia com um significado especifico e ocupa, ao longo do tempo, dois territórios distintos: o da medicina e o da religiosidade.
Em sua gênese, queria dizer cuidado. Temos ainda no âmbito judicial o termo curador, que é aquele que cuida de quem não tem condições de se cuidar de per si.
Hoje, os dois polos da palavra ‘cura’ estão se desconectando um do outro. Permanece apenas a cura medica enquanto tratamento, erradica-se a doença pelo uso de medicalização. A doença fica confundida com o sintoma. O médico passa, pouco a pouco, a ser um técnico que vem rapidamente perdendo contato com o outro extremo: aquele que cuida. Eu não estou generalizando e dizendo que todos os médicos são assim. É apenas uma avaliação histórica do nosso tempo e em nada há um julgamento do uso de medicação ou trabalho do médico, mas sim da perda do contato com o todo.
Curar, cuidar, segurar são pontos que se tecem formando um bordado. O curar/cuidado é, do meu ponto de vista e de Winnicott, mais relevante que o curar/tratamento. Todos nós, ou pelo menos muitos de nós, sabemos que beijinho de mãe cura.
Numa outra perspectiva da palavra cura, o Evangelho de Lucas (9 1-6) nos contempla, sem se contrapor ao que já foi dito, nos remetendo à dimensão do cuidado.
Lucas nos conta que Jesus:
“Tendo reunido os Doze, lhes deu poder e autoridade sobre todos os demônios e lhes concedeu curar as doenças. (Ver também Mt: 10-1)
Enviou-os a proclamar o Reino de Deus e a fazer curas, e lhes disse: “Não leveis nada para a viagem, nem bastão, nem alforje, nem pão, nem dinheiro. Não tenhais duas túnicas cada um. Em qualquer casa onde entrardes, permanecei ali. Daí é que partireis de novo. Se não vos acolherem, deixando essa cidade, sacudi a poeira de vossos pés: será um testemunho contra eles”.
O primeiro passo é a união dos doze. Sim, dos doze apóstolos, mas também das múltiplas facetas que nos compõem. A noção da cura tem múltiplas facetas; de algum modo, apesar de não sermos apóstolos, combatemos e nos debatemos com os nossos demônios e com os demônios dos que nos procuram.
Não levar nem bastão nem alforje, nem pão, nem dinheiro é entrar em relação em estado de fragilidade, pobreza e humildade. Não tenho — mas sou inteira disponibilidade. É entrar sem defesas, ou melhor, sem defesas rígidas, sem teorias a priori, sem recursos e sem suas riquezas. Talvez, uma possível explicação para o que Bion quis dizer com o aforismo: “Sem memória, sem desejo”.
Não tenhais duas túnicas. Penso em buscar cada vez mais uma integração possível. Não ter duas túnicas me faz lembrar não de ter duas caras. A túnica da igreja e a túnica do mercado. Não ter duas túnicas é não viver dissociado ou cindido. É poder estar unificado e único, presente com uma única túnica.
Se não for possível ser acolhido, retire-se sem ressentimento: deixe-o junto com o pó da terra que ficou preso na sola de seus sapatos. Vá de alma lavada.
A leitura e a interpretação deste texto do evangelho, obviamente, é minha e o escolhi justamente por que fala daquilo com que trabalho – nossos demônios. A transformação, a expulsão, a compreensão de línguas enigmáticas, a língua do outro.
Se ele o procurou, é porque precisa que alguém compartilhe o peso de sua bagagem. Se não tiver disponibilidade para suportar e carregar o alforje do outro e acolhê-lo, não se surpreenda se ele o deixar.
[1] WINNICOTT, D. W. – Tudo começa em casa. São Paulo: Martins Fontes, 1999.