João Pedro Jávera
Da máscara ao rosto
O teólogo Ioannis Zizioulas, em seu livro Being as Communion, oferece uma
compreensão histórica do termo “pessoa” (prosopon), apontando para o fato de que o
mesmo dizia respeito à máscara que era usada na Grécia antiga por um ator. Segundo
Zizioulas, a etimologia da palavra pros-opon faz referência aos olhos (opos) – à parte
mais expressiva do rosto humano –, e daí seu uso terminológico como máscara. Assim,
máscara e pessoa, nesse momento histórico, eram sinônimos.
A tragédia era a situação na qual eram elaborados os conflitos entre a liberdade
humana e a necessidade racional de se manter a concepção de um mundo harmonioso.
Aqui, a máscara era utilizada como vestimenta que permitia ao ator vivenciar, por alguns
momentos, a experiência de liberdade, já que era precisamente na experiência do Teatro
que os gregos esforçavam-se para se contraporem à unidade harmoniosa do Cosmos que
os oprimia devido à sua organização excessivamente racional e moral. Era por meio da
atuação no Teatro que o ser humano podia lutar contra os deuses e contra seu destino –
era ali que ele transgredia; mas era também nesse mesmo contexto de experiência que ele
aprendia que não seria possível escapar do destino, e, tampouco, da punição dos deuses
(Zizioulas, 1991, p. 32).
Parece-nos contraditório, na atualidade, pensar que somente utilizando-se de uma
máscara poderia o ser humano experimentar algum sentido de liberdade e adquirir
identidade individual, já que, para nós, a máscara diz respeito justamente a uma
sobreposição que oculta o que é mais próprio de alguém.
A coincidência entre máscara e pessoa também se fará presente na cultura romana;
no entanto, a partir de outra conotação. A persona fazia referência à individualidade em
seu sentido social – uma máscara cívica, uma identidade legal, um papel a ser desenrolado
entre os cidadãos, cuja função era estabelecer relacionamentos funcionais a fim de que o
Estado se organizasse de maneira cada vez mais consistente. Aqui, a atuação da máscara
não acontecia em um palco, mas na própria vida social.
Zizioulas ajuda a compreender que em ambos os casos a concepção de pessoa e,
consequentemente, a de máscara, estava atrelada a um tipo de identidade que não é aquela
pautada na autenticidade de alguém, mas em uma identidade como sobreposição; assim,
a concepção de máscara chega até nós por meio da ideia de um falseamento de si.
Na atualidade, após a Cultura ocidental ter vivido séculos de prática de
falseamento de si, e termos descoberto, por fim, que muitas modalidades de adoecimentos
psicológicos estão relacionadas precisamente a esse fato, chegamos a um ponto em que
prezamos pela busca da autenticidade pessoal, bem como pela espontaneidade individual
e, mais ainda, pela expressão do que poderíamos chamar de nossa “singularidade”(1).
Winnicott, pediatra e psicanalista inglês, em seu último trabalho compartilhou a
seguinte percepção, advinda de mais de quatro décadas de prática clínica: “mesmo que
nossos pacientes não fiquem curados, eles nos são gratos por vê-los como realmente são,
e isso nos traz uma satisfação profunda (Winnicott, 1967c, p. 187). Assim, a psicanálise
pode ser definida, na companhia desse autor, como uma prática terapêutica que visa a
descoberta de um si mesmo verdadeiro (true self), ou ainda, de um centro individual (the
core of the self) que se sente real e que pode, então, existir no mundo de maneira criativa
e espontânea.
Winnicott reconhecia que sua maneira particular de praticar a psicanálise estava
profundamente aparentada com a perspectiva freudiana, pois seu interesse clínico estava
assentado na intenção de possibilitar a expressão daquilo que era mais genuíno em
alguém, ou ainda, em liberar o centro de vitalidade de uma pessoa que se encontrava
impedido por uma série de fatores externos e internos. Ele diz:
Particularmente, relaciono o que divido em self verdadeiro e falso com a divisão de Freud
do self em uma parte que é central e controlada pelos instintos (ou pelo que Freud chamou
sexualidade, pré-genital e genital), e a parte orientada para o exterior e relacionada com
o mundo (Winnicott, 1965m, p. 128).
Como é possível perceber, a atividade psicanalítica inverte a histórica
coincidência entre máscara e pessoa, e busca, ao contrário, ajudar seus pacientes a
fazerem o menor uso possível de suas “máscaras”, a fim de que possam se sentir mais
reais e de posse de seu potencial criativo. Uma outra forma de apresentar isso seria
afirmando que parte da vocação psicanalítica é auxiliar aqueles que existem a partir de
uma estrutura psíquica dissociada e defensiva a serem mais integrados e, assim,
apresentarem-se nas situações cotidianas a partir de seus gestos próprios – gestos
criativos, espontâneos e surpreendentes –, que trazem o inédito para o mundo e que
contemplam a particularidade do si-mesmo, já que “o gesto espontâneo é o verdadeiro
self em ação” (Winnicott, 1965m, p. 135).
Preocupado com o sofrimento de seus pacientes, Donald Winnicott utilizou-se das
expressões que eles mesmos lhe forneciam em sessões de psicoterapia a fim de elaborar
uma teoria sobre a etiologia do “falso self” – uma estrutura defensiva que lhes permitia
viver em sociedade, mas ao custo de um empobrecimento subjetivo.
Winnicott reconhecia que para se viver em sociedade é necessário um certo uso
da estrutura defensiva do self, que é frequentemente representada pela atitude social
polida e amável de um indivíduo. No entanto, quando nos aproximamos dos quadros
(1) Ainda que valha lembrar que muitas pessoas buscam por uma psicoterapia apenas para o alívio imediato
de sintomas, fazendo então um uso superficial do dispositivo analítico.
patológicos relacionados a essa questão, percebemos que existem pessoas nas quais um
falso self vem a se implantar como real, ou, na melhor das hipóteses, surge a fim de
proteger o self verdadeiro de uma exposição que poderia vir a ser ameaçadora sentido da
privacidade pessoal, mantendo-o assim oculto, mas permitido a ele ter uma “vida secreta”
(Winnicott, 1965m, p. 131). Nesses casos, diz Winnicott, é possível ver um claro exemplo
de doença clínica como uma organização que guarda uma finalidade positiva, já que o
falso self se instala como protetor e mantenedor da esperança de que, um dia, o verdadeiro
self possa vir à luz (quando condições ambientais favoráveis se fizerem presentes). “O
melhor exemplo que posso dar”, diz o psicanalista a esse respeito, “é o de uma mulher de
meia-idade que tinha um falso self muito bem sucedido, mas que por toda a vida tinha a
sensação de não ter começado a existir e que tinha estado sempre procurando um jeito de
chegar ao seu self verdadeiro” (idem, p. 131).
Segundo a compreensão desse autor, devido à impossibilidade de viver a
onipotência primária no estágio das primeiras relações objetais, algumas pessoas ficam
impedidas de expressar gestos criativos que emanam de seu self central – o coração da
identidade individual. De acordo com a teoria winnicottiana, a “mãe suficientemente boa”
é aquela que alimenta a onipotência do lactente e, até certo ponto, vê sentido nisso; assim,
um self verdadeiro começa a ter vida através da força dada ao fraco ego do lactente pela
complementação pela mãe das expressões de onipotência do lactente. A consequência
disso é que
O lactente começa a acreditar na realidade externa que surge e se comporta como por
mágica (por causa da adaptação relativamente bem-sucedida da mãe aos gestos e
necessidades do lactente); a mãe age de modo a não colidir com a onipotência do lactente.
Deste modo o lactente começa gradualmente a renunciar à onipotência” (Winnicott,
1965m, p. 133).
No entanto, quando a mãe (ou cuidador mais próximo) não oferece a seu bebê
durante um certo período de tempo tal experiência, ela não é capaz de complementar a
onipotência do lactente e, assim, falha em satisfazer seu gesto, “substituindo-o por seu
próprio gesto, que deve ser validado pela submissão do lactente” (idem, ibidem). Para
Winnicott, essa submissão por parte do lactente é o estágio inicial do falso self. Ainda que
tal complacência seja inicialmente protestada por meio de irritabilidade generalizada, ou
até mesmo de distúrbios da alimentação, pode vir a se cristalizar, dependendo dos
recursos disponíveis no ambiente.
Por meio dessa terminologia simples e cotidiana, Winnicott lançou uma
compreensão teórica dentro do campo psicanalítico que nos permite fazer uma
diferenciação entre rosto e máscara: enquanto o primeiro seria a autêntica expressão do
self, a última faria referência a uma estrutura defensiva que surge contra a ameaça do
centro identitário de si; ou, então, como desdobramento dessa situação, a máscara seria o
rosto falseado, o rosto distorcido pela impossibilidade de expressão legítima de si.
Em seu artigo “O papel do espelho da mãe e da família no desenvolvimento
infantil”, Winnicott nos possibilita estabelecer uma mais clara aproximação entre a
estrutura falso self e a concepção de máscara, assim como a ideia de um self verdadeiro e
a existência de um rosto, a partir da discussão que traz quando levanta a seguinte
pergunta: “o que o bebê vê quando olha para o rosto da mãe?” Diante de tal
questionamento, ele mesmo se antecipa a responder: “creio que, em geral, ele vê a si
mesmo. Em outras palavras, a mãe olha para o bebê e a aparência da mãe se relaciona
com o que ela vê ao olhar para o bebê” (Winnicott, 1967c, p. 179). Entretanto, diz ele,
muitos bebês, menos afortunados, “vivem a experiência prolongada de não receber de
volta aquilo que dão. Eles olham, mas não veem a si mesmos, e isso traz consequências”:
Em primeiro lugar, a capacidade criativa desses bebês começa a se atrofiar e, de algum
modo, eles buscam em seu entorno outras formas de conseguir que o ambiente lhes
devolva algo de si […] Em segundo lugar, o bebê se acostuma com a ideia de ver o rosto
da mãe sempre que olha para ela. O rosto da mãe deixa, então, de ser um espelho. (idem,
p. 179).
A partir das ideias contidas nesse texto, podemos compreender que Winnicott faz
coincidir a necessidade de um bebê dissociar, ou, até mesmo, cindir seu self em dois, com
a impossibilidade de ter seu rosto revelado/devolvido pelo ambiente de cuidado; a
máscara do falso self se torna necessária devido à incapacidade de o ambiente alimentar
o narcisismo primário do bebê.
Mais adiante, nesse mesmo texto acima citado, Winnicott menciona o atendimento
que fez a uma paciente que sofrera esse tipo de privação, e afirma: “toda a análise dessa
paciente gira em torno de ‘ser vista’ pelo que realmente é, em qualquer momento”; e, em
outra oportunidade, diz: “tive que deslocar essa mãe para permitir que a paciente
começasse a ser uma pessoa” (p. 183). A partir dessas citações, podemos concluir que
“ser pessoa” é, para Winnicott, ter um rosto próprio – um rosto que é revelação de um si
mesmo, de uma singularidade; ao passo que, necessitar utilizar-se de uma máscara social
(marca da complacência) é estar impossibilitado de ser pessoa, ou seja, de estabelecer
uma relação criativa e, portanto, pessoal com a realidade compartilhada.
Assim, a partir das ideias de Winnicott, uma das contribuições que a psicanálise
pode oferecer para a sociedade é justamente a de possibilitar a emerção da dimensão
verdadeira, ou seja, espontânea e criativa de um indivíduo: ajudá-lo a tornar-se quem ele
realmente é! Essa parece ser uma das tarefas mais essenciais na atualidade, tendo em vista
o número alarmante de indivíduos que não puderam estabelecer uma relação pessoal com
o mundo à sua volta e apresentam-se, na relação transferencial, sedentos por serem
reconhecidos e por poderem ser eles mesmos em suas relações interpessoais.
No entanto, ainda que tal tarefa seja muito nobre, necessária e até mesmo muito
exigente em termos de implicação e dedicação por parte da dupla analítica, penso que não
deva essa ser compreendida como a última etapa na constituição de alguém, e, mais ainda,
do processo de um trabalho analítico. O próprio Winnicott parece ter acenado para a
perspectiva a respeito de um trabalho pessoal que se direciona para um “mais-além-doself”, quando afirmou: “Há muito crescimento que é crescimento para baixo. Se eu tiver
uma vida razoavelmente longa, espero encolher e tornar-me suficientemente pequeno
para passar pelo estreito buraco chamado de portas da morte” (Winnicott, 1984g, p. 225).
A morte, mencionada aqui, parece-me referir-se a o que há de mais desconhecido
para o ser humano, ao que há de mais “outro” para nós. Assim, proponho pensar esse
movimento de crescimento para baixo como busca pela alteridade – uma alteridade
radical –, por aquilo que se apresenta para nós como não-familiar, pelo totalmente outro:
promessa de transformação do indivíduo em direção ao inédito.
Penso que dois “outros” da psicanálise, ou seja, duas áreas do conhecimento
vizinhas a ela, que mais avançaram na compreensão desse estágio de amadurecimento
pessoal “pós-self” sejam a filosofia e a teologia; e, por esse motivo, apresentarei alguns
assinalamentos sobre o Homem, apresentados nesses campos, que podem vir a auxiliar a
clínica a expandir seu horizonte a respeito do potencial de constituição humana.
Do rosto ao semblante
Entrar em contato com os textos do filósofo contemporâneo Pierre Hadot suscitou
em mim muitas surpresas, justamente por ele apresentar a filosofia em seus estágios
iniciais como uma “prática” e, mais ainda, como uma “prática de exercícios espirituais”.
Segundo o autor, antes de a filosofia ter-se tornado um emaranhado de especulações
intelectuais, ela “era um método de progresso espiritual que exigia uma conversão radical,
uma transformação radical da maneira de ser [de seus praticantes]” (Hadot, 1999, p. 78).
Para ele, a filosofia antiga era vivida no cotidiano dos filósofos como um
progresso espiritual justamente porque exigia a participação da totalidade do praticante,
um envolvimento de todas as suas capacidades – intelectuais, afetivas, imaginativas,
físicas:
A palavra “espiritual” permite entender bem que esses exercícios são obra não somente
do pensamento, mas de todo o psiquismo do indivíduo e, sobretudo, ela revela as
verdadeiras dimensões desses exercícios: graças a eles, o indivíduo se eleva à vida do
Espírito objetivo, isto é, recoloca-se na perspectiva do Todo (“Eternizar-se ultrapassandose”) (Hadot, 2014, p. 261).
Além desse sentido de totalidade, o termo espiritual também diz respeito à
filosofia como uma atividade que tem como telos, ou seja, como seu objetivo final, algo
que se encontra para além da realização humana, para além do horizonte humano de
experiência. Hadot ensina que, a partir do “Banquete”, de Platão, a etimologia da palavra
philo-sophia, ou seja, o amor, o desejo por sabedoria “torna-se o programa da filosofia”,
sendo a própria Sabedoria (a qualidade da qual a própria deusa é encarnação) a “norma
transcendente” que escapa ao Homem, e que, ao mesmo tempo, o conduz a um mais além
de si.
Amante da sabedoria, isto é, desejoso de atingir um nível de ser que seria aquele da
perfeição divina, o filósofo sofre por ser privado da plenitude do ser e aspira atingi-la: “o
filósofo é privado de sabedoria, de beleza, do bem, deseja, ama a sabedoria, a beleza, o
bem. Ele é Eros, o que significa que ele é o Desejo, não um desejo passivo e nostálgico,
mas um desejo impetuoso” (Hadot, 1999, pp. 76-77).
A fim de exemplificar o paradoxo dessa situação Hadot cita Quintiliano, quando
este afirmou: “é preciso tender em direção ao que há de mais alto: é o que fizeram a maior
parte dos Antigos que, mesmo pensando que ainda não se havia encontrado um sábio, não
deixavam de ensinar os dogmas da sabedoria” (Hadot, 2014, p. 261).
Sofia, ou, Sabedoria, era a alteridade radical que motivava o filósofo antigo a seu
desenvolvimento pessoal. Sofia era o rosto que o filósofo ansiava vir a expressar – não
mais seu próprio rosto, mas o rosto de Sofia! Eis aqui o sentido máximo da espiritualidade
envolvida na vida filosófica: aprender a morrer em vida (enterrar o si mesmo), a fim de
tornar-se um Outro(2). O filósofo, dessa forma, buscava a semelhança com essa alteridade
que o instigava e que o transcendia.
Ao ler o livro “Iconostasis”, do teólogo e filósofo russo Pavel Florensky, encontrei
recursos para compreender com mais clareza a que pode se referir esse processo espiritual
que envolve o movimento humano de “tornar-se semelhante a”. Esse autor ensina que a
etimologia do termo latino faciem, significa forma; assim, o rosto humano diria respeito
à forma, ou, ainda, ao modo de ser específico de alguém. Já os termos similis e similare,
que também podem ser traduzidos por “rosto”, guardam uma peculiaridade própria, já
que acenam para o sentido de um rosto que se parece com alguma coisa, “que se
assemelha a”; assim, a melhor tradução dessa palavra para a língua portuguesa seria
“semblante” – “um rosto que se faz semelhante a”(3).
Sendo Florensky um teólogo cristão, a fim de especificar ainda mais sua
compreensão acerca do movimento espiritual que a concepção de “semblante” carrega,
recorre à discriminação presente em Gênesis entre duas concepções: a “imagem” e a
“semelhança” do ser humano com seu criador. Ele diz:
Em Gênesis, a “imagem” de Deus é diferenciada da “semelhança”, já que a imagem de
Deus presente no interior do Homem deve ser entendida como o dom ofertado pelo
criador; ao passo que a semelhança deve ser entendida como a potencialidade de alcançar
a perfeição espiritual, isto é, encarnar na carne de nossa personalidade a oculta herança
de nossa semelhança sagrada com Deus; e revelar esta encarnação em nosso rosto
(Florensky, 1996, pp. 51-52).
Ao trazer essa contribuição, Florensky compreende que é tarefa de cada ser
humano fazer-se semelhante a seu criador – lapidar o próprio rosto para que esse seja
revelação de um Outro.
No cristianismo, esse modelo de semblante a ser almejado, segundo os
Evangelhos, fora exercido por Jesus, e estaria expresso nas seguintes afirmações: “Se vós
me conhecêsseis a mim, também conheceríeis a meu Pai; e já desde agora o conheceis, e
o tendes visto (Jo 14:7)”; ou, então, “Eu não posso de mim mesmo fazer coisa alguma.
Como ouço, assim julgo; e o meu juízo é justo, porque não busco a minha vontade, mas
a vontade do Pai que me enviou” (Jo 5:30). A partir de passagens como essas, é possível
concluir que “o Filho é o meio pelo qual o Pai nos é conhecido” (Lynch, 1979, p. 731); o
(2) Em maiúsculo, porque transcendente e, portanto, absoluto, não-empírico.
(3)O verbo francês sembler é justamente traduzido para nós por “parecer-se com”, “ser semelhante a”,
guardando até hoje sua proximidade com o mesmo em latim.
que também quer dizer que o Filho se fez forma – rosto – do Pai (Logos), a fim de que o
mundo pudesse vir a conhecê-Lo. Dessa forma, a partir da linguagem proposta pela
teologia cristã, o rosto do Filho é semblante: rosto do próprio Pai.
Essa compreensão nos permite também colocar a questão da seguinte forma: o
semblante é um rosto transfigurado pela presença transbordante da alteridade. Assim, se
o rosto é revelação de um si mesmo, o semblante é ícone (4) de um Outro.
Para Florensky, o oposto absoluto do semblante é a máscara. Ele nos ensina que
primeiro significado de máscara dizia respeito àquilo que se apresentava como um rosto,
mas que era vazio por dentro; isto é, “tem materialidade física, mas não tem substância
metafísica”; por outro lado, “um semblante é a aparência de alguma realidade e, como tal,
é um intermediário para que possamos entrever a essência daquilo que buscamos
compreender” (p. 53).
Por meio desse material levantado, é possível formular as três concepções da
seguinte maneira: a máscara é uma mentira, e por meio dela não podemos entrever nada,
já que é vazia; o rosto já é a revelação de algo – de um si mesmo, de uma existência única,
de um centro individual criativo; no entanto, o semblante seria o ápice da realização
humana, a superação do próprio rosto, que, por demasiado amor (devoção) a um Outro,
abre mão de sua própria expressão a fim de dar lugar “ao amado”.
Assim, se para a filosofia antiga, o filósofo era aquele que cuidava de si a partir
do anseio de um dia vir a ser expressão de Sofia em seu cotidiano, para o cristianismo, a
utopia do cristão estaria em transformar o próprio rosto em conformidade com o Cristo.
A partir desse meu estudo teórico, que vem sendo influenciado primordialmente
pelo pensamento de Gilberto Safra, bem como de minha experiência clínica e pessoal,
venho cada vez mais sendo convencido de que o ser humano está assentado
existencialmente em uma estrutura devocional, ou seja, está voltado para a alteridade,
ansiando se realizar por meio de uma relação de intimidade com alguma faceta do
absoluto que lhe seja cara. A “norma transcendente” a que Hadot faz referência quando
menciona o fator que motiva o filósofo a se constituir pode, dessa forma, também ser
compreendido como um valor, um princípio, um sentido pessoal que é descoberto por
cada um de nós a partir de nossa biografia e que nos impele à transformação.
Desde que venho me aproximando desse tipo de compreensão sobre o ser humano,
tenho me perguntado quais poderiam ser as diversas modalidades de alteridade, ou ainda,
as possíveis faces do absoluto que estariam presentes nos discursos de meus pacientes e
aos quais eles guardam uma sede de devoção. Esse tem sido um critério clínico que venho
utilizando para me aproximar do universo simbólico de meus pacientes e para
compreender melhor suas ações no mundo, bem como as buscas internas subjacentes a
essas ações.
(4) “Ícone” do grego εἰκών, eikon, imagem. Gilberto Safra (2004, 2006) elabora uma concepção do símbolo
icônico advindo da teologia cristã e estabelece a partir dele uma interface com a clínica. Segundo ele, por
sua especificidade paradoxal e complexa, o ícone é o símbolo que mais bem se aproxima da condição
humana, pois além de ser uma representação, também é um “objeto apresentativo furado” (SAFRA, 2006,
p. 53), no sentido de permitir entrever o transcendente que ali se presentifica. Presentificar significa, aqui,
“o acontecimento que fura o mundo e, em um instante, permite que se vislumbre a face do eterno e do Real”
(idem, ibidem).
Um paciente em especial me forneceu material suficiente para que eu levantasse
a hipótese de que sua deusa inspiradora era a “Criatividade”. Sendo ele uma pessoa que
trabalha com design de experiência, e que oferece a seus clientes dispositivos de interação
e comunicação a fim de que possam vir a facilitar o acesso à criatividade em seus afazeres
e, dessa forma, trazerem melhorias a seus negócios, tal paciente parece estar buscando
constantemente levar os demais a um contato íntimo com a Criatividade – valor que é
vivido por ele como sagrado.
Desde pequeno ele se interessava por desenhos e pinturas. Pelo fato de ser tímido,
vivia a experiência com a arte de maneira solitária (ou, defensiva). No entanto, em certo
momento de sua vida descobre a alegria de criar junto com o outro, e isso se lhe acontece
como uma grande revelação. A partir de então compreende que o acesso à criatividade é
também “ponte” para o mundo, “ponte” para o encontro com o outro. Além de a
criatividade ser possibilidade de comunicação, também era vivida por ele como
experiência de fluxo, o que lhe trazia muito prazer, já que quando criava costumava entrar
em certo estado de transe.
Esse paciente descobre que fazer meditações (adentrar o silêncio) lhe ajudavam a
estabelecer ainda mais contato com a criatividade. Eu nunca o ouvi referir-se à
criatividade como “minha criatividade”, mas sempre “criatividade” enquanto uma
entidade. Assim, ele passou ao longo de sua vida a desenvolver um profundo respeito e
gratidão por experiências criativas.
Lembro-me de uma sessão na qual ele ficou indignado quando descobriu que
certas pessoas de uma empresa usavam alucinógenos durante uma semana para voltarem
mais criativos e produzirem mais em suas agências. Para ele, isso era uma ofensa à
sacralidade do próprio criar. Pude então compreender que a criatividade era vivida por
ele como um ser vivo, digno de ser encarnado, de fazer sua visita aos mortais a fim de
dignificar o mundo, de redimi-lo de sua feiura e decadência. A seriedade com a qual tem
praticado suas meditações diárias me faz pensar que esse paciente anseia ser o próprio
rosto da criatividade. Ele usa a criatividade como sua “norma transcendente”, com a qual
procura se assemelhar.
Trago a apresentação breve desse caso porque ele me parece servir de exemplo
possível de uma “tradução” que fiz das ideias que encontro na filosofia e na teologia, e
que estão voltadas para uma nova visão antropológica, ou seja, um novo olhar sobre as
possibilidades de constituição humana e os caminhos para que esse processo se realize.
Assim, compartilho minhas pesquisas e minha escuta clínica a fim de convidar o leitor a
também se utilizar de tais critérios e decidir se lhe faz sentido acompanhar seus pacientes
a partir dessa compreensão.
Quais são as faces do absoluto que aparecem no imaginário de nossos pacientes?
Quão a sério eles levam essa relação com essa norma que os transcende? O quanto eles
atendem o apelo daquilo que lhes é mais caro e sagrado? Talvez uma das tarefas clínicas
possíveis de serem atravessadas seja a de ajudar um paciente a tornar-se cada vez mais
semelhante a esse Outro que o atravessa e o convoca à transcendência, ou seja, ajudá-lo
a transformar seu rosto em semblante.