Ana Cristina Gomes Bueno

 

Neste artigo, faço mais perguntas do que ofereço respostas. A clínica, como eu a entendo, é um espaço de escuta do sofrimento, onde podemos entrar em estado de com-paixão com o interlocutor que está à nossa frente. Não penso que é só um espaço em que se tenha de  sofrer como se fosse uma sala de tortura — figura que muitos pacientes, ao chegar, trazem como se fosse um estigma.

Perguntas que não querem calar: Sofrimento tem cor? Sofrimento tem raça? Sofrimento tem gênero? Como e por que eu identifico o racismo em mim?

Sou uma mulher branca, criada em uma família de classe média, que de um lado tem origem em imigrantes com baixa escolaridade, que a geração de meu pai foi a primeira a frequentar e obter título universitário. Do outro lado, uma família com pretensões aristocráticas, falida. No entanto, todos eram alfabetizados, falavam francês e alemão, e muitos com título universitário. A maioria dos homens formados em advocacia e as mulheres com uma cultura de salão, uma cultura fútil. Falavam francês e alemão, algumas ainda falavam inglês, conheciam a história da França imperial e da Inglaterra real, como se fossem das famílias imperiais.

Fui criada em uma família racista. As empregadas domésticas eram todas negras. Minha primeira babá era branca, mas eu chorava muito e logo perceberam que a menina que trabalhava como faxineira — negra — era mais “jeitosa” e eu —segundo reza a lenda— gostava de ficar no seu colo, e não chorava. Ela logo foi alçada ao cargo de babá, com direito a uniforme branco e touca para os cabelos. Na casa da minha avó materna, também tinha uma empregada, cozinheira, bem jovem — negra — a quem eu me afeiçoei muito. Esse depoimento é uma forma de um resgatar e poder fazer uma mínima homenagem a essas mulheres negras que passaram pela minha vida.

Durante muitos anos, eu me pensei uma pessoa não-racista, e me horrorizava qualquer pensamento que pudesse me remeter a alguma atitude ou sinal de racismo. Ser racista significava para mim ser uma pessoa muito má.  Mas, com Cida Bento, Robin Diangelo, Grada Kilomba, entre outras, aprendi a lutar contra um racismo estrutural que está em todos nós, nas nossas piadas, no nosso vocabulário, em nossas referências às cores e por aí afora.

Depois dessas colocações que considero imprescindíveis, vamos falar de uma abordagem psicoterapêutica que possa atender à demanda de pacientes negros, ou como diz Diangelo (2018) não só os negros, mas os multirraciais, que provavelmente representam a grande maioria da população brasileira.

A ideia da supremacia branca não passa de um mito, que se fortaleceu imensamente com a ascensão do nazismo. A nossa fragilidade é de tal proporção que precisamos nos empoleirar em um pedestal de superioridade, que não se sustenta sob um olhar um pouco menos superficial, nem histórico, nem antropologicamente e certamente nem do ponto de vista psicológico. No entanto, a origem da Psicanálise é europeia e mais ainda, tem seus primeiros expoentes no império austro-húngaro, na virada do século XIX para o XX. E, se desenvolve quase que totalmente no eixo franco-anglicano, dirigindo-se posteriormente para as Américas, primeiro a do norte e depois para a Argentina, Uruguai e Brasil. Podemos afirmar que a Psicanálise se desenvolveu a partir do olhar da branquitude para a branquitude.

Cida Bento (2022), baseada em Edward Said — Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente1— afirma:

 O olhar europeu transformou os não europeus em um diferente e, muitas vezes, ameaçador, outro. E esse outro tem muito mais a ver com o europeu do que consigo próprio. (p.28)

A Ásia e a África, que eram regiões com um comércio movimentado e uma economia rica, sofrem um revés e tornam-se pobres, com problemas sociais crônicos. A história da civilização branca é assentada, em muitos sentidos, na carne e no sangue do povo negro, especialmente no Brasil e nos Estados Unidos.

Apesar de todas as diferenças socioeconômicas, históricas e da cor da pele, há algo que nos une e que nos faz todos iguais, de que não podemos nos esquecer: a nossa humanidade. A necessidade de existir, se constituir e alojar a nossa psique no corpo são exatamente as mesmas. O desenvolvimento emocional em negros e brancos segue o mesmo processo, apesar das singularidades de todos nós.

Porém, como diz Winnicott (1956), a mãe precisa entrar em “estado de devoção”, “preocupação materna primária” — e como uma mãe negra consegue ter suficiente segurança para poder entrar nesse estado de regressão necessária, para poder cuidar de seu bebê? Eu não estou falando só de mãe com situação econômica precária, já que mãe brancas que vivem em comunidades/favelas, passem pelas mesmas questões. Você saber que seu filho, mesmo antes que ele nasça, mesmo antes que vá para a escola, vai ser alvo de preconceito, de discriminação, correr o risco de ser chamado de macaco— só isso já é um sofrimento. Mesmo que você — família negra — tenha condições financeiras de pagar um bom colégio, sabendo que nesses colégios a dominação branca é flagrante, como estar tranquila?

Apesar dessas e tantas outras dificuldades, criadas apenas pela cor da pele, muitas mães negras conseguem cuidar suficientemente bem de seus rebentos. Mas, para além dos sofrimentos e das dores que todos nós enquanto seres humanos passamos, há uma escala maior, tanto pela ancestralidade, quanto pela ameaça constante de rejeição, exclusão, discriminação. Um sentimento permanente de inferioridade imposto pela branquitude, que muitas vezes se reveste de um ar raivoso de submissão ou de uma arrogância defensiva.

Com tudo isso, eu me pergunto: pode um analista branco atender um paciente negro? Pode um analista branco compreender o sofrimento de ser discriminado pela cor de sua pele? Pode um branco assoprar as feridas criadas pela subjugação feitas por nós brancos ao povo negro? Podemos nos colocar na situação de ouvir e tentar curar feridas abertas pela nossa ancestralidade? Podemos nos colocar em um lugar que não seja de superioridade e sem nos tornarmos algozes dos nossos pacientes, sem subjugá-los? Essas são perguntas que cada um de nós deve responder de per si. A partir de uma revisitação cuidadosa e sem medo aos nossos preconceitos, ao nosso racismo, e de um reconhecimento que vivemos em uma sociedade eivada de racismo estrutural, e novamente usando o título do livro de Diangelo: Não basta não ser racista: sejamos antirracistas.

Eu não tenho condições de responder por todos, cada um tem que fazer seu percurso pessoal e intransferível, e coletivo, reverberando a nossa ancestralidade para poder transformar. Não há medo, não somos maus, mas precisamos provocar e discutir a tradição, para poder criar a partir de suas bases. Por tudo isso e mais um pouco, o que for feito e o que não for será deixado como legado aos nossos descendentes.


  1. Said, Edward- Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Cia das Letras, 1990. ↩︎
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