Ana Cristina Gomes Bueno

 

RESUMO

O trabalho se propõe a fazer um paralelo entre a escrita de Clarice Lispector, especificamente o texto “Uma aprendizagem ou o Livro dos Prazeres”, e o texto de 1966 escrito por D. W. Winnicott “Elementos masculino e feminino ex-cindidos”, publicado no livro Explorações Psicanalíticas e também no livro O Brincar e a Realidade. Também fizemos o mesmo com o conto de Guimarães Rosa, O espelho.

Ampliar e aprofundar as trilhas a partir das pegadas deixadas por Clarice e por Rosa para entender o conceito de elemento feminino puro. O elemento feminino puro como o baldrame em que se assenta a constituição do self e do sentido de estar sendo/ estar existindo, associado ao conceito de criatividade, achados da clínica de Winnicott.

 

INTRODUÇÃO

 

…Tudo, aliás, é a ponta de um mistério. Inclusive, os fatos. Ou a ausência deles. Duvida? Quando nada acontece, há um milagre que estamos vendo.[1]

 

A mais premente necessidade de um ser humano era tornar-se um ser humano.[2]

 

 

Neste trabalho, vou abordar uma pequena faceta do artigo de D.W. Winnicott “Os elementos masculino e feminino ex-cindidos[3] encontrados em homens e mulheres”, apresentado para a Sociedade Britânica em 02 de fevereiro de 1966. Inspirada por essa epigrafe, tentarei mostrar o quanto esse texto de Winnicott se conecta com a prosa poética de Guimarães Rosa e Clarice Lispector, na medida que em a poética de ambos, João e Clarice, nos remete ao originário/ponto de origem — e é nesse sentido que a criatividade vai ser abordada por Winnicott.

Os problemas destacados neste capitulo são examinados ao longo do livro a partir de seu ponto de origem, localizado nos estágios iniciais do crescimento e do desenvolvimento individual. (WINNICOTT, 1963b/1965, 2019, p. 111).

 

Os poetas seriam mais que suficientes, mas como já nos disse o próprio Donald, “os insights que vêm em poesia não nos absolvem da dolorosa tarefa de nos afastarmos, degrau a degrau, da nossa ignorância…” (WINNICOTT,1989, p.87). Apesar das tentativas, a nossa ignorância ainda continua grande, como diz Rosa:

 

Ah, meu amigo, a espécie humana peleja para impor ao latejante mundo um pouco de rotina e lógica, mas algo ou alguém de tudo faz frincha para rir-se da gente… E então? (ROSA, p.70)

 

Claro que João e Clarice o fazem de uma forma poética e eu os aproximo sem nenhuma tentativa de reduzir o texto de Rosa/Lispector à Psicanálise. Ele, João, e ela Clarice, nos ofertam alguns diamantes que poderiam ser usados juntamente com vários artigos de Winnicott, mas optei por usá-los com esse texto.

[1]  ROSA, 2019. p.69, grifo meu.

[2] LISPECTOR, 2020. p. 29, grifo meu.

[3] A palavra em inglês split-off seria possível ser traduzida apenas por cisão (cindido), no entanto a preposição off indica além da cisão um estado de separação, nesse sentido mantivemos a tradução ex-cindidos.

Ele, Winnicott, nesse texto de sua maturidade, também nos oferece material para garimparmos a alma humana, sem que nunca terminemos essa tarefa, que é uma tarefa para toda a humanidade.  A proposta desse trabalho é ousada, mas não chega nem perto do que poderia ser apresentado, por limitações em vários sentidos: do tempo, do espaço, da autora, e outras que não se sabe.

De João, comecei por usar uma frase do conto o “Espelho”, que me alertou primeiro das possíveis conexões de construção. De Clarice, a Lispector, que também será um suporte literário, encontrei a fundação para ousar destilar os componentes teóricos apenas do elemento feminino puro como uma bússola e que andará em paralelo com a frase de João, de modo que, se puder estabelecer conexões, pontes serão construídas entre esses autores — Donald, Clarice e João com o objetivo de ampliar, acima de tudo, a minha visão sobre o texto de Donald W. Winnicott e o que possa significar esse feminino e sua estreita relação com a criatividade e ao que Winnicott chama de identificação primária.

 

Mas— que espelho? Há- os “bons” e “maus”, os que favorecem e os que detraem; e os que são apenas honestos, pois não. E onde situar o nível e ponto dessa honestidade ou fidedignidade? Como é que o senhor, eu, os restantes próximos, somos, no visível? O senhor dirá: as fotografias o comprovam. Respondo que além de prevalecerem para as lentes das maquinas objeções análogas seus resultados apoiam antes que desmentem minha tese (…). Ainda que tirados de imediato um após o outro, os retratos sempre serão diferentes. Se nunca atentou nisso, é porque vivemos, de modo incorrigível, distraídos das coisas mais importantes. (…). Não se esqueça, é de fenômenos sutis que estamos tratando. (GUIMARÃES ROSA, p.69)

 

 

Um breve comentário sobre as traduções apresentadas

No que se refere ao texto Os elementos masculino e feminino ex-cindidos[1] encontrados em homens e mulheres (1966), a tradução apresenta alguns problemas relevantes, ainda que o texto retraduzido e publicado pela editora Ubu apresente uma qualidade muito superior ao anteriormente publicado.  Em determinado momento, Winnicott usa seguinte colocação:

 

Por mais complexa que se torne a psicologia do senso do self e do estabelecimento de uma identidade à medida que o bebê cresce, não há o surgimento de um sentido do self a não ser com base em tal relacionamento no sentido de SER/ESTAR SENDO. Esse senso de SER/ESTAR SENDO é algo que precede a ideia de ser-um-com, porque ainda não houve mais nada além da identificação (ser idêntico a). Duas pessoas separadas podem sentir-se como uma, mas aqui nesse lugar que estou examinando o bebê e o objeto são um. O vocábulo ‘identificação primária’ talvez tenha sido usado exatamente nesse sentido em estou descrevendo, e estou tentando mostrar quão vitalmente importante essa experiência é para que se inicie todas as outras experiências de identificação subsequentes.  (WINNICOTT,1966 – tradução minha[2])

 

Esse trecho, por mim traduzido, já mostra uma visão equivocada da tradução original do vocábulo Being como Ser. A tradução corrente entendeu que o sufixo –ing transforma o verbo em substantivo (be=ser; being=o ser). Neste caso, de acordo com o pensamento winnicottiano entendo que quando Winnicott fala Being, está falando de algo em movimento e, portanto, de se estar sendo. Não um ser fixo, mas um ser em constante construção, continuar indo, estar sendo mantem a continuidade do ser.

 

Sobre a criatividade antes de tudo.

 

Isso posto, vamos voltar ao tema desse trabalho que, para mim pelo menos, é um dos mais instigantes e de difícil acesso escrito por D. W. Winnicott. O texto muitas vezes exige uma leitura mais minuciosa e muitas vezes se perde dentro de uma confusão que o próprio Winnicott reconhece. “Quando eu me dei um tempo para pensar sobre o que tinha acontecido, fiquei confuso.” (Winnicott, 1966)

Ao abrir o texto, Winnicott nos diz:

 

Não há nada de novidade, dentro ou fora da psicanálise, na ideia de que homens e mulheres têm uma “predisposição para a bissexualidade”. (WINNICOTT, 1966)

 

A questão da bissexualidade é um dos primeiros conceitos assimilados por Freud, a partir de suas conversas com W. Fliess. Todos os seres humanos seriam constituídos por uma predisposição concomitante para o masculino e para o feminino. Mas Winnicott, bem ao seu estilo, olha por um outro prisma.

Dados clínicos — é esse o material que fornecerá a Winnicott um achado significativo no garimpo da natureza humana. Aqui vemos a importância, a supremacia da clínica sobre a teoria, ainda que essa deva ser considerada. Winnicott parte da tradição e abre uma estrada nova para pensar a constituição do humano. Ele estava lidando com algo, em alguma medida, desconhecido — desconhecido da Psicanálise, mas certamente não dos poetas e dos místicos.

Como base para a ideia que quero dar aqui, sugiro que criatividade é um dos denominadores comuns entre homens e mulheres. (p.169)

 

Essa frase é preciosa, pois apesar das diferenças entre todos e das diferenças de gênero, Winnicott nos coloca frente ao que temos em comum, não como homens ou mulheres, mas como seres humanos.

A essa altura é importante destacar uma complicação especial oriunda do fato de que, embora homens e mulheres tenham muito em comum, eles também são distintos. Obviamente, a criatividade é um dos denominadores comuns, algo que ambos compartilham, assim como compartilham a angústia pela perda ou falta de vida criativa. (Winnicott,1966, p.118/119)

 

A sexualidade, enquanto questão de gênero, apesar de ser abordada, comparada e contrastada, no meu entender passa a ficar em segundo plano, dando lugar a um outro elemento. No entanto, ele aponta para a existência de olhares diversos para a criatividade: um feminino e outro masculino. Aqui já começa uma diferença importante e uma colocação de “tipos” de feminino e masculino, e de um feminino ligado à criatividade. Vamos nos ater ao aspecto do feminino ligado à criatividade.

É com uma alegria tão profunda. É uma tal aleluia (…)

Continuo com capacidade de raciocínio — já estudei matemática que é a loucura do raciocínio — mas agora quero o plasma —quero me alimentar diretamente da placenta. (LISPECTOR, 2017, p. 09)

 

Querer ou precisar se alimentar da placenta traz uma narrativa direta nas nossas artérias de elemento feminino puro. É uma alegria, uma aleluia, um estado de êxtase o encontro com a placenta. O bebê que se alimenta da placenta está dentro do útero materno e é um com a mãe. Não há separação entre eles.

Percebi que estava lidando com o que poderia ser chamado um elemento feminino puro. A princípio, fiquei surpreso por só conseguir chegar a isso olhando o material apresentado por um paciente do sexo masculino. (WINNICOTT, 1989, p.173)

 

Vamos agora pinçar no texto as características que Winnicott propõe como pertencentes ao elemento feminino puro, e que se ligarão ao texto de Lispector e às suas narrativas poéticas.

Primeiro ele afirma que o elemento feminino está presente tanto em homens quanto em mulheres (o mesmo acontecendo com o elemento masculino) e os elementos feminino e masculino podem estar ex-cindidos em alto grau, orbitando como um satélite em torno dos aspectos integrados da personalidade.

Há um trecho de Clarice que nos mostra o elemento masculino em ação e, de alguma maneira, ligado ao alimentar-se. É interessante notar que nesse trecho o foco narrativo é alguém externo à narrativa, que fala em terceira pessoa, o que pode ser lido como uma maneira de trazer a ex-cisão para dentro do texto.

… dera vários telefonemas tomando providências, inclusive um dificílimo para chamar o bombeiro de encanamentos de água, fora à cozinha para arrumar as compras e dispor na fruteira as maçãs que eram a sua melhor comida… (LISPECTOR, 2020, p.11)

 

O elemento feminino puro ou destilado não se relaciona com o pulsional e, portanto, não se relaciona com a alimentação, que é, se assim podemos dizer, tarefa ligada ao elemento masculino.

 

Desejo dizer que o elemento que estou chamando de “masculino” transita entre o ativo “relacionar-se” e o passivo “estar relacionado a”, ambos ancorados no instinto. É no desenvolvimento dessa ideia que falamos de pulsão instintual na relação do bebê com o seio e com a alimentação e, posteriormente, em relação a todas as experiências que envolvem as zonas erógenas principais, e às pulsões e satisfações subsidiárias.  (Winnicott, no livro O Brincar e a Realidade está na página 131- porém a tradução é minha)

 

O elemento feminino relaciona-se com o seio/mãe no sentido de o bebê se tornar o seio (ou seja, a mãe), no sentido de que o objeto é o sujeito. Eu não consigo identificar nenhuma pulsão instintual aqui.” (WINNICOTT, p.177)

Clarice descreve o estar sendo:

Ulisses pergunta:

— Por que é que você olha tão demoradamente cada pessoa?

Ela corou:

— Não sabia que você estava me observando. Não é por nada que olho:

É que gosto de ver as pessoas sendo.

Então estranhou-se a si própria e isso parecia levá-la a uma vertigem.

É que ela própria por estranhar-se estava sendo. Mesmo arriscando que Ulisses não percebesse disse-lhe bem baixo:

Estou sendo… (LISPECTOR,2020. p.67- grifo meu)

 

Não é possível, segundo nosso autor, identificar/ falar do elemento feminino puro sem a noção, tantas vezes explicitada por ele, de mãe suficientemente boa. O seio/mãe é representante simbólico do Ser, ou como usei na tradução: do Estar Sendo. Um Ser/Elemento Feminino que provê, que manuseia com sutileza, que está inserido em uma Cultura; de maneira que isso só pode ocorrer de forma satisfatória, e nunca perfeita, quando o seio É ou Está Sendo.

Estar sendo/ existindo é algo do impalpável e tão palpável. É fenômeno que ao mesmo tempo está na luz e na sombra. Território do visível e do oculto. Podemos ver isso claramente em Clarice. E ao falar do estar sendo nos dá dicas do feminino puro. Esse tema pode parecer muito abstrato e até absurdo, mas o que mais tenho visto na clínica são existências massacradas, exauridas e se sentindo muito pouco reais. Um viver sem existir, um não sendo. O estar sendo só acontece em fluxo, é puro fluxo, é movimento e por isso o feminino puro é inapreensível. No feminino puro não há palavras, o que me ocorre pensar é que talvez o toque, o ruído quase inaudíveis de uma respiração, o tom e o ritmo da voz possam dar sentido e fazer contato com esse território. A palavra, talvez, possa como um anzol, fisgar a não- palavra.

De mim só se sabe que respiro.  (LISPECTOR, 2017, p.39)

 

Corroborando o que estou dizendo, Winnicott afirma:

O estudo do elemento feminino puro nos leva a outro lugar.

O estudo do elemento feminino puro destilado e incontaminado leva-nos ao SER/ESTAR SENDO, e isso constitui a única base para a autodescoberta e um sentido de existir/estar existindo… (p. 180).

 

Há uma frase de Winnicott do texto “a criatividade e suas origens” (Em o brincar e a realidade) que pode contribuir aqui:

“no que diz respeito ao elemento feminino, a identidade exige tão pouca estrutura mental que essa identidade primária é uma característica que pode estar presente desde o início, permitindo o estabelecimento do ser simples” (1971a, p. 133).

 

 

CONCLUSÃO

 

Um fato que deveria ser claro, mas que se obscurece nas entranhas do não verbal. O elemento feminino puro parece ter o dom de se obscurecer, se ofuscar, talvez por se localizar na zona da não-palavra, no lugar da não-mente, impedindo dessa forma o pensamento que pensa, a palavra que não tem existência. São raros e sagrados os momentos em que se toca o existindo.

Pensando a metáfora da casa, o baldrame une, as paredes são separadas, mas o telhado volta a unir. Não foi à toa que pensei na metáfora da casa. Em muitos momentos DW usa terminologias ligadas à construção: Fundação, estrutura, elementos.

Na linha do amadurecimento do ser humano, podemos identificar que o bebê puramente somático, a partir do seu relacionamento/contato com o elemento feminino puro disponibilizado pela mãe suficientemente boa, instala/adquire a qualidade de ESTAR SENDO, se sentir existindo.

DW diz ser esta a mais simples das experiências e quero esclarecer que a mais simples em absoluto não significa a mais fácil, e sim aquela em que não há elementos compostos.  Ou seja, “que cada um   é o mesmo que o outro.” (p.140)

Isto aparentemente já foi tratado em algum lugar, mas sempre se referindo às mulheres e às meninas, enquanto o feminino puro faz parte da constituição do humano, nos confere a nossa humanidade. Construir uma pessoa sem a integração do feminino puro seria como construir uma casa como a da música do Vinicius de Moraes:

 

Era uma casa muito engraçada
Não tinha teto, não tinha nada
Ninguém podia entra nela não
Porque na casa não tinha chão

Ninguém podia entrar nela não…[3]

 

 

Quando o elemento feminino falha, não acontece a unidade necessária; teremos algo na linha da música do Vinicius, mas certamente não engraçada como a música e sim com muito sofrimento.

           De qualquer forma, podemos dizer que o feminino puro começa em casa.

 

  1. Só como uma curiosidade, e para não deixar de fazer minha reverência ao pai de todos nós- Sigmund Freud- em algumas anotações de 1938, publicada sob o título de: Achados, Ideias, Problemas, faz o seguinte comentário:

 

12 de julho 1938- As crianças gostam de expressar uma relação de objeto por uma identificação: ‘Eu sou o objeto’. ‘Ter’ é mais tardio dos dois; após a perda do objeto, ele recai para ‘ser’. Exemplo: o seio. ‘O seio é uma parte de mim, eu sou o seio’. Só mais tarde: ‘Eu tenho’ — isto é, ‘eu não sou ele’…  (Freud, vol. XXIII, p. 335)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

BIBLIOGRAFIA

 

  1. BIBLIA – Tradução Ecumênica. 2ª ed., São Paulo: Ed. Loyola Jesuítas, 2015
  2. LISPECTOR, Clarice. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. Rio de Janeiro:

Rocco, 2020.

  1. LISPECTOR, Clarice. Água Viva. Rio de Janeiro: Rocco. 2019.
  2. LISPECTOR, Clarice. Hora da Estrela. Rio de Janeiro: Rocco. 2017.
  3. ROSA, João Guimarães. Primeiras Estórias: O espelho. São Paulo: Global, 2019.
  4. WINNICOTT, D. W. (1963) Fear of Breakdown, In Psychoanalytic Explorations.

Massachussetts: Harvard University Press.1989. chapter 18

  1. WINNICOTT, D. W. (1966) On the Splitt-off Male and Female Elements. In

Psychoanalytic Explorations. Massachusetts: Harvard University Press. 1989. Chapter 28.

  1. WINNICOTT, D.W. (1963) A criatividade e suas origens. In O Brincar e a

realidade: A criatividade e suas origens. São Paulo, Ed. Ubu, 2019. Capítulo 5.

[1] A palavra em inglês split-off seria possível ser traduzida apenas por cisão (cindido), no entanto a preposição off indica além da cisão um estado de separação, nesse sentido mantivemos a tradução ex-cindidos.

[2] Todas as citações do texto Os elementos masculino e feminino ex-cindidos serão feitas a partir da tradução realizada por mim. Usei como referência o texto em inglês e a tradução é de minha inteira responsabilidade.

[3] MORAES, Vinicius- A casa. 1980. (parceria de V. de Moraes e de Sérgio Bardotti.)

 

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