por João Pedro Javera
Uma experiência recente que tivemos e que nos impulsionou a escrever esse texto sobre algumas facetas éticas que orientam nossos estudos e nossa postura clínica deu-se a partir da tradução de um artigo do psicanalista americano Harold Searles. Nosso grupo tem muitas vezes realizado suas investigações a partir de traduções de textos de autores que são inspiração para nós. Recentemente nos deparamos com um artigo de Searles intitulado Schizophrenic Communication (1961b), que faz parte de uma coletânea de seus escritos que recebeu o nome de “Collected papers on schizophrenia and related subject”. Esse dedicado terapeuta trabalhou e residiu em um hospital psiquiátrico durante muitos anos de sua vida, o que o tornou uma referência nos estudos das esquizofrenias e psicoses. Chamou nossa atenção um trecho do artigo em questão em que Searles se volta para o tema da projeção na comunicação com alguns de seus pacientes, e por meio da discussão ali tratada tem-se a possibilidade de conhecer um pouco de seu gênio terapêutico e da posição ética em que se assenta. A humildade em reconhecer suas próprias limitações e a capacidade de se colocar no lugar de seus pacientes e atravessar com eles suas questões nos inspiraram a trazer como temas fundamentais de nossa apresentação a hospitalidade, o testemunho e a amizade – dimensões éticas do cuidado clínico que têm se revelado cada vez mais imperativas no mundo contemporâneo.
Eis o trecho em questão, no qual Searles compartilha uma paradigmática experiência vivida com dois pacientes esquizofrênicos e que se faz revelação de sua postura clínica:
É particularmente difícil para o terapeuta entender situações em que o paciente manifesta uma introjeção com traços que tenham a ver com o próprio terapeuta, algum aspecto do terapeuta do qual ele mesmo tenha pouca consciência, e cujo reconhecimento, como parte de si, ele considera, sem sombras de dúvidas, desagradável. Tive a oportunidade de constatar, inúmeras vezes, que certos traços de comportamento do paciente especialmente irritantes e de difícil manejo assentam-se nessas bases; e somente quando posso admiti-los a mim mesmo como um aspecto da minha própria personalidade, eles deixam de ser traços tão veementemente problemáticos do comportamento do paciente. A título de exemplo: um jovem esquizofrênico costumava me aborrecer ao responder em um tom de superioridade, por meses a fio, “ao seu dispor”, sempre que eu me levantava para sair e fazer meu comentário um tanto estereotipado de que eu o encontraria no dia seguinte – como se fosse minha obrigação agradecê-lo pelo privilégio de passar uma hora com ele, e dessa forma, era como se chamasse minha atenção pela falha em não dizer humildemente “obrigado” ao final da sessão. Finalmente, ficou claro para mim, muito por conta da ajuda de outro paciente esquizofrênico que pôde me fazer enxergar minha própria arrogância de uma forma um tanto mais direta que aquele primeiro paciente, com seu arrogante “ao seu dispor”, personificava de maneira muito precisa um elemento de arrogância nefasta que estivera presente em meu comportamento nos últimos tempos, em cada uma das ocasiões em que me despedia dele com um tom de consolo ou pena, e que dava a impressão de que eu seria o próprio Cristo se curvando diante de um pobre coitado, acenando que voltaria a ofertar-lhe meu auxílio no dia seguinte (SEARLES, 2005, p. 393, tradução nossa).
A honestidade de Searles e a capacidade de reconhecer suas próprias dificuldades e os traços defensivos de sua personalidade nos encantaram, e pensamos que essas características de um profissional são daquelas que mais bem apresentam o que admiramos na dinâmica relacional analítica, pois favorecem que uma atmosfera amistosa assim se constitua e, dessa forma, permitem com que a terapêutica de fato seja alcançada – tanto para analisando quanto para analista.
Tal horizonte ético e relacional teve certamente que ser conquistado pela psicanálise, uma vez que não estava presente desde o início de suas atividades clínicas. A Psicanálise, como sabemos, nasce em solo europeu e foi inicialmente bastante influenciada pela mentalidade cientificista que marcou o final do século XIX. Nesse momento da história ocidental, a postura epistemológica que se fazia soberana era aquela que separava o sujeito do conhecimento de seu objeto de investigação e que, segundo as observações perspicazes e lúcidas de Santos (1995), teve como uma de suas consequências o estabelecimento de um tipo de relação que tendia a interiorizar o sujeito à custa da exteriorização do objeto, tornando-os estanques e incomunicáveis. Segundo aquele autor:
O conhecimento científico moderno é um conhecimento desencantado e triste que transforma a natureza num autômato, ou, como diz Prigogine, num interlocutor terrivelmente estúpido. Este aviltamento da natureza acaba por aviltar o próprio cientista na medida em que reduz o suposto diálogo experimental ao exercício de uma prepotência sobre a natureza. O rigor científico, porque fundado no rigor matemático, é um rigor que quantifica e que, ao quantificar, desqualifica, um rigor que, ao objectivar os fenômenos, os objectualiza e os degrada, que, ao caracterizar os fenômenos, os caricaturiza (p. 32).
Além de Freud ter sido formado enquanto cientista nessa perspectiva epistemológica, a distância afetiva preconizada na relação com seus pacientes – ou, como ele mesmo iria formular em certo momento de seu percurso clínico enquanto princípio de abstinência – justificava-se como postura ética para que o trabalho analítico pudesse acontecer. As primeiras recomendações de Freud de que o analista deveria servir como um espelho para o paciente (Freud, 1912) e não oferecer ao último senão apenas aquilo que lhe fora projetado transferencialmente eram, para o entendimento de uma de suas analisandas, Jeanne Lampl-de Groot (1976), “sobretudo destinadas a impedir que os afetos, conflitos e problemas pessoais do analista pesassem sobre o paciente” (citado por Haynal, 1995, p. 6). Dessa forma, tanto a partir de fundamentações epistemológicas quanto éticas, a manutenção do modelo de interação sujeito/objeto se perpetuava no terreno clínico psicanalítico junto à terapêutica freudiana.
Talvez o analista contemporâneo de Freud que mais veementemente fez uma denúncia das possíveis consequências negativas dessa postura relacional foi Sándor Ferenczi. No final de sua vida esse médico húngaro redigiu com a ajuda de sua secretária um Diário em que pôde registrar suas impressões mais honestas e transparentes a respeito da prática terapêutica que há décadas vinha realizando; esse trabalho era um balanço de sua experiência clínica. Publicado apenas cinquenta anos após tê-lo escrito, Ferenczi abre seu livro da seguinte maneira:
A insensibilidade do analista (maneira afetada de cumprimentar, exigência formal de “contar tudo”, a atenção dita flutuante que, afinal não o é e certamente não é apropriada para as comunicações dos analisandos, impregnadas que estão de sentimentos e frequentemente trazidas com grandes dificuldades) tem por efeito: (1) o paciente sente-se ofendido pela falta ou pela insuficiência de interesse; (2) como ele não quer pensar mal de nós, nem nos considerar desfavoravelmente, procura a causa dessa não-reação nele mesmo, ou seja, na qualidade daquilo que nos comunicou; (3) finalmente, duvida da realidade do conteúdo que antes ainda estava tão próximo do sentimento. Assim, ele “retrojeta”, poderíamos dizer, introjeta a censura dirigida contra nós. Na realidade, a recriminação é assim enunciada: “Você não acredita em mim! Não leva a sério o que lhe estou comunicando! Não posso admitir que fique aí sentado, insensível e indiferente, enquanto me esforço por imaginar algo trágico da minha infância!” (FERENCZI, 1990, p. 31)
Ferenczi é hoje conhecido por nós como aquele analista que corajosamente acolheu os conteúdos contratransferenciais que surgiam no contato com seus pacientes e levou a sério os apontamentos que aqueles faziam em relação a suas estereotipias e a seu ar de superioridade camuflada, os quais a sensibilidade deles lhes informava. Os pacientes de Ferenczi que mais contribuíram para seu aperfeiçoamento profissional foram aqueles mais prejudicados psiquicamente, ou ainda, os que mais mal acolhidos foram por suas famílias; o conhecimento profundo que tinham da ausência de hospitalidade em suas constituições fazia desses pacientes “radares” da falta de interesse do outro em si mesmos e da frieza afetiva no contato inter-humano.
A percepção genial de Ferenczi teria sido a de que, ao agir dessa forma distante e afetivamente fria com eles, acabava por reeditar o trauma que haviam sofrido em suas infâncias, concluindo, portanto, que “a naturalidade e a honestidade do comportamento [do analista] constituem o clima mais adequado e mais favorável à situação analítica” (idem, p. 32).
Uma das descobertas que Freud fez no contato com suas pacientes histéricas e que mudou radicalmente o curso da técnica psicanalítica foi a de que muitas delas mentiam a respeito do possível abuso sexual que referiam ter sofrido em suas infâncias. Esse fato o fez abandonar sua teoria sobre o trauma, levando-o a adotar uma postura mais distante de seus pacientes e a focar o trabalho analítico nas fantasias que eram por elas produzidas – mais do que no evento traumático mesmo, ou ainda, no ambiente de suas constituições psíquicas.
Ferenczi, já na passagem da década de 1920 para 1930, irá resgatar a teoria do trauma, criando uma situação de grande tensão e impasse com seu mestre. Em “Confusão de línguas entre os adultos e a criança”, Ferenczi (1933) apresenta sua teoria de que haveria um regime próprio da linguagem infantil, a “linguagem da ternura”, através da qual a palavra pode ser experimentada ludicamente, e que seria muito distante daquele regime no qual os adultos funcionam, em que a ‘‘linguagem da paixão” é predominante e sua marca fundamental. О trauma, para o psicanalista húngaro, estaria justamente no encontro desajeitado desses dois regimes de linguagem que, ao promover experiências atordoantes para a criança, demandaria dela a produção de sentidos das experiências vividas a fim de que se situasse psiquicamente acerca do ocorrido.
Kupermann (2009), estudioso de Ferenczi, coloca a situação da seguinte maneira, ao considerar o tema do trauma sexual infantil:
Se о adulto “enlouquecido” desconsidera a dissimetria existente entre ele e a criança, ocorre uma violação. A tendência da criança será buscar um terceiro personagem – outro adulto – que possa testemunhar a ruptura por ela sofrida no processo de produção de sentido, e auxiliá-la na elaboração das suas experiências. О evento traumático só se configura se о testemunho fracassa, e о terceiro personagem, por meio da indiferença ou mesmo da impossibilidade de compreendê-la, termina por desmentir seu sofrimento. О efeito do desmentido traumático sobre a criança é a iminência do colapso subjetivo, que a obriga ao emprego de sofisticados mecanismos de defesa. Ferenczi demonstra, a partir do que revela a clínica, que, nesses casos, a criança opta pela identificação com о agressor, culpando-se pelo evento traumático como uma maneira de escapar do abandono absoluto (pp. 194-195).
No entendimento de Kupermann, mais do que qualquer violência sofrida pela criança no contato com o adulto, “о elemento efetivamente mórbido para о psiquismo infantil é о “desmentido” produzido pela ausência daquele a quem se destinou о testemunho” (idem, p. 190).
A partir dessas considerações, a psicanálise passou a reconhecer que a experiência de testemunho seria, em muitos casos, mais importante para o desenvolvimento do processo terapêutico do paciente do que a própria atividade de análise – quebra das ligações afetivas patológicas para que um novo arranjo pulsional pudesse se estabelecer no psiquismo. O testemunhar é compreendido aqui tanto como acompanhar o paciente em sua narrativa discursiva sobre suas mazelas, quanto viver junto com ele o seu pathos, sua dor; como bem nos recorda Jacques Lacarrière, “testemunha, em grego, se diz martyr, que também significa mártir” (1996, p. 14).
Para Safra (2006), é tarefa do analista fazer do destino de seu paciente o seu próprio – no registro transicional, ou seja, em jogo. Esse autor nos oferece uma analogia para compreendermos o que está afirmando: para podermos acompanhar um filme, ele dirá, precisamos, no espaço potencial, “nos deixar levar pelas mãos do diretor e nos colocar no horizonte de sentido que ele nos propõe. A partir desse momento, vivemos o filme. Somos os personagens, somos o diretor – e esse jogo, necessariamente, abre um diálogo com as nossas próprias questões” (p. 142). Por meio das situações que ocorrem no filme, somos nós mesmos colocados em movimento, em trânsito.
A mesma situação deveria se estabelecer na relação clínica, e quando isso ocorre, o analista reconhece que necessita de seu analisando para alcançar o provir das suas próprias questões, já que o último lhe oferece uma oportunidade para realizar a travessia psíquica e existencial que tem pela frente. Talvez tenha sido a partir desse reconhecimento que Winnicott escreveu como nota de dedicatória de seu livro “O brincar e a Realidade” (1971/2019), a seguinte frase: “Aos meus pacientes, que pagaram para me ensinar”.
Pelo fato de muitos analistas já terem se disponibilizado a fazer da psicanálise uma atividade de encontro afetivo e de intimidade, a compaixão pôde ser compreendida de uma maneira não mais sentimentalista, como o fora no passado. A oferta de si ao outro, ou seja, a oferta do próprio corpo do profissional como instrumento de encontro, a disponibilização da própria presença somática a serviço do paciente, veio a se tornar um princípio ético bastante utilizado em inúmeros manejos clínicos, já que se descobriu que muitos deles necessitam perceber no corpo de seu analista sinais de sua compreensão ao que ele comunicou ou viveu em experiências anteriores. “É a resposta estética e ética”, Safra afirmará, “que possibilita corroborar ontologicamente o outro, pois no registro ético a resposta à presença da pessoa veicula esteticamente o reconhecimento, o consolo, a ajuda, a reflexão, o testemunho, a dignidade” (2006, p. 157). O analista, assim agindo, oferece ao analisando o que consegue elaborar em si mesmo sobre a situação que esse último lhe traz, oferta à resposta estética e ética ao que o analisando vive: “paradoxalmente, ele (o analista) está ofertando a si mesmo como morada do Outro: comunidade de destino” (idem). Safra tem denominado “comunidade de destino” essa experiência em que analista e analisando se reconhecem como sendo parte da mesma humanidade, em que compartilham da mesma condição existencial – seres finitos, sem lugar fixo para se enraizarem, vizinhos do nada (pois frequentemente visitados pelo não-sentido), instáveis e pobres do Ser, ou seja, peregrinos em constante busca de sentido e companhia de travessia.
A partir do legado de psicanalistas como os que citamos, temos percebido que a clínica já pode acontecer enquanto experiência de atravessamento do sofrimento humano tanto para o paciente quanto para o analista, ou seja, sob uma atmosfera de amizade, em que ambos compartilham do pathos de serem gente:
O encontro na situação clínica demanda que esta esteja aportada na solidariedade e na amizade, decorrente da consciência de que o Outro que nos procura está irmanado a nós, pois estamos em meio ao mesmo destino: a condição humana. Falar em solidariedade ou amizade para com o paciente costuma causar entre psicoterapeutas e psicanalistas certo mal-estar, pois isso parece “infringir” a regra de abstinência. No entanto, isso decorre do fato de não estarmos habituados a pensar a situação humana pelo registro ontológico. Amizade é habitualmente compreendida como fruto de algum dinamismo psicológico. Não se trata disso. Solidariedade e amizade significam aqui um princípio ético fundamental, só possível quando estamos realmente humildes (voltados ao húmus-terra), situação que ocorre ao estarmos em desapego diante do Outro. Então, compreendemos que nossa biografia é diferente da de nosso paciente, mas somos companheiros de viagem pelas intempéries da existência. Posicionados dessa forma, estaremos em comunidade de destino, condição fundamental para o nascer, para o caminhar pela vida e para o morrer de qualquer ser humano! É em comunidade de destino que há a possibilidade de o Outro poder vir a experienciar a igualdade, necessidade fundamental da alma humana (SAFRA, 2008, pp. 105-106).
Resgatando mais uma vez Santos, compreendemos que na atualidade “é necessária uma outra forma de conhecimento, um conhecimento compreensivo e íntimo que não nos separe e antes nos una pessoalmente ao que estudamos” (1995, p. 85). Para o cientista social português, estamos na crista de uma virada de paradigma da ciência, em que o carácter autobiográfico e auto referenciável de quem a realiza deve ser plenamente assumido. O autoritarismo epistemológico está cada vez mais cedendo a uma horizontalidade nas relações, e a psicanálise não pode ficar de fora desse movimento. Graças a terapeutas corajosos como os que trouxemos aqui, temos companhia para realizar tal empreitada.
Se você se sente em sintonia com esses pressupostos, lhe oferecemos as boas-vindas para que possa sentar-se à nossa mesa e compartilhar suas experiências, enriquecendo, assim, seu estofo teórico e sua interioridade e também a nós.
Bibliografia
Ferenczi, Sándor (1985/1990). Diário Clínico. São Paulo: Martins Fontes
Ferenczi, Sándor. (1932/11992). Confusão de línguas entre os adultos e a crianga. In: Psicanalise IV. Sao Paulo: Martins Fontes.
Freud, Sigmund (1912/1996). A dinâmica da transferência. In: Vol. XII. Rio de Janeiro: Imago.
Haynal, André. (1995) A técnica em questão. Controvérsias em psicanálise: de Freud e Ferenczi a Michael Balint. São Paulo: Casa do psicólogo.
Kupermann, Daniel (2009). Figuras do cuidado na contemporaneidade: testemunho, hospitalidade e empatia. In: Por uma ética do cuidado. Rio de Janeiro: Garamond Universitária.
Lacarrière, Jacques. (1975/1996). Padres do deserto. Homens embriagados de Deus. São Paulo: Loyola.
Safra, Gilberto (2006) A hermenêutica na situação clínica. São Paulo: Sobornost.
Safra, Gilberto (2008). O sagrado e as necessidades da alma na situação clínica. In: Religiosidade e psicoterapia. São Paulo: Roca.
Santos, Boaventura (1995). Um discurso sobre as ciências. Porto: Edições Afrontamento.
Searles, Harold (1965/2005). Collected papers on schizophrenia and related subject. London: Karnac.
Winnicott, Donald (1971/2019). O brincar e a realidade. São Paulo: Ubu.