João Pedro Javera, Junho de 2023
Fui agraciado recentemente com a sabedoria presente na exposição que o amigo Elton Pinotti (2023) fez em sua defesa de tese intitulada “O amor mais real que a realidade: realizações em mística e psicanálise”, na qual ele, dentre muitos temas complexos e bastante pertinentes ao dias atuais, diferencia dois conceitos que usualmente são utilizados como sinônimos: vazio e nada. O vazio foi apresentado aqui como estado de pura potencialidade, promessa de novos encontros com o Real, enquanto o nada foi compreendido como experiência de desrealização, ou ainda, experiência de profundo desamparo vivida por um sujeito, por meio da qual se vê “assalto pela desesperadora irrealidade de si mesmo” (Pinotti, 2023, p. 8).
Às ideias apresentadas pelo amigo ecoaram em minha interioridade por um longo
período de tempo, e vieram a ganhar novos sentidos quando, pouco tempo depois,
deparei-me com um livro vendido nas prateleiras de histórias infantis chamado “O pote vazio” (Demi, 1990). Esse novo presente que ganhei do Real me fez colorir a
compreensão sobre a distinção entre vazio e nada de um modo rico e inusitado, e que
gerou muitas reverberações acerca de meu entendimento sobre a vocação da experiência clínica.
O conto em questão traz a situação vivida pelo jovem Ping, na ocasião em que o
imperador do reino decide escolher um sucessor para seu cargo. O critério escolhido
pelo sábio governante é observar de que maneira as crianças que ali vivem se comportam
diante da simples tarefa de plantar um semente dada por ele, bem como cuidar do processo intrínseco que o plantio demanda, ao longo de todo um ano.
Ping recebe tal proposta com muita animação e esperança, já que tem uma inclinação natural pelo cuidado de plantas e flores. No entanto, depara-se com uma surpresa após dois meses transcorridos: nenhum sinal de vida é dado dentro do lindo vaso preenchido por terra da melhor qualidade.
O rapaz não se deixa vencer por esse curioso sinal e investe mais uma vez em seu vaso. Mas após sucessivas tentativas frustrantes Ping começa a se preocupar; e sua preocupação transforma-se em angústia justamente quando nota que todos seus colegas carregam para lá e para cá vasos com as mais lindas flores. Após uma conversa com um deles — portador de um exuberante vaso —, nosso rapaz esmorece e chora. Por sorte, seu atento e amoroso pai está por perto e encoraja Ping a levar para o imperador, no dia seguinte, o melhor que ele tinha conseguido fazer ao longo do prazo estabelecido: seu pote vazio!
Na manhã fatídica todas as crianças estão alvoroçadas pela excitação em virem a
ser o novo imperador do reino, menos Ping, que de forma envergonhada se aproxima
do local de apresentação dos resultados. O imperador está sério, observador, e nota no
meio da multidão o único vaso sem flor, convocando seu dono a se aproximar. Quando
inquire Pinga respeito do vaso que carregava, esse lamenta seu fracasso e chora; e é nesse
instante desconcertante que o imperador muda de feição e põe-se alegre, dizendo:
“Encontrei! Encontrei alguém que merece ser Imperador!”. Logo em seguida, dirige-se a todas as crianças e pronuncia as seguintes e derradeiras palavras:
Não sei onde vocês conseguiram essas sementes, pois as que eu lhes dei estavam todas queimadas. Nenhuma delas poderia ter brotado. Admiro a coragem de Ping, que apareceu diante de mim trazendo a pura verdade. Vou recompensá-lo com meu reino inteiro e torná-lo imperador deste país.
Tendo em vista o adubo que eu já carregava dentro de mim — enriquecido pela compostagem feita no encontro entre a prática clínica e os estudos sobre espiritualidade —, e a partir da semeadura realizada pelo colega que defendera sua brilhante tese de doutorado, a jornada de Ping fez brotar em minha consciência um lindo sentido sobre o vazio, e até mesmo um incentivo para seu cultivo no cotidiano. Minha intenção aqui é compartilhar alguns desses sentidos e encorajar a visita e a permanência terapêutica nesse não-lugar tão prenhe de presenças, de companhias, de Outros.
Uma vez que sustentar o vazio demanda companhia — a fim de que tal experiência não deslize sorrateiramente para o nada —, utilizar-me-ei de algumas delas a fim de delinear minha contribuição. Donald Winnicott, guardião do conhecimento sobre o início da vida, será o primeiro convidado a participar dessa construção; ao passo que Gilberto Safra e outros místicos assumirão os cuidados referentes aos desdobramentos das questões originárias, questões essas que se atualizam na vida humana em espirais cada vez mais complexas, para baixo, para cima, para os lados… Ao final de tal jornada retornarei ao conto de Ping, e procurarei resgatá-lo à luz do material compartilhado.
Vazio e nada na companhia de Winnicott
A partir das ideias contidas no capítulo terceiro, “O brincar: proposição teórica”
(19685), do livro póstumo de Winnicott denominado “O brincar e a realidade” (19712),
é possível perceber que o autor está ocupado da tarefa de explicitar sua compreensão
sobre a formação daquilo que ele denominou “terceira área da experiência”, ou, ainda,
“espaço potencial”. Essa área é justamente “terceira” porque estaria “no entre” de duas
pessoas, no vão de uma relação — nem totalmente outra a um si mesmo, e nem
totalmente idêntica e pertencente a si. Esse é o espaço que pode vir a ser ocupado quando
a separação entre bebê e mãe torna-se uma possibilidade, uma realidade; e será, para
Winnicott, nesse espaço que transitaremos, na melhor das hipóteses, ao longo de nossas
vidas. A esse respeito, diz o psicanalista britânico:
No estado de confiança que surge quando a mãe consegue se sair bem nessa
difícil tarefa (ausente quando ela não consegue) [de sustentar sob seus cuidados
o estado de dependência absoluta inicial de seu rebento], o bebê começa a
desfrutar das experiências baseadas no “casamento” entre a onipotência dos
processos intrapsíquicos e o controle que ele exerce sobre o real. À confiança na
mãe representa um playground intermediário, a partir de onde se origina a ideia
de mágica, uma vez que o bebê tem determinada experiência de onipotência […]
O playground representa um espaço potencial entre a mãe e o bebê ou que une
mãe e bebê (Winnicott, 19681, pp. 82-83).
O espaço potencial, portanto, cumpre uma função paradoxal: permite ao bebê
experimentar uma vida separada da mãe, ao mesmo tempo que o mantém conectado a
ela, simbolicamente; em outras palavras, permite que a separação entre os dois corpos
não seja vivida pelo bebê como uma queda, despencamento em uma experiência de
profunda solidão desoladora e irremediável.
A partir do tema central que está sendo tratado nesse artigo, é possível afirmar que
a entrada no espaço potencial e a possibilidade de desfrutá-lo de maneira pessoal oferece
ao ser humano a primeira vivência de um vazio-preenchedor, de uma ausência que não
é sentida como despedaçamento, sumiço de si mesmo. Assim, “pode-se dizer que não
existe separação possível entre os seres humanos, apenas a ameaça da separação; e a
ameaça é máxima ou minimamente traumática de acordo com a experiência dos
primeiros distanciamentos” (1971qg, p. 172).
Para ter acesso à essa bênção simbólica é necessário, de acordo com a teoria winnicottiana, que as tarefas iniciais do cuidado ambiental sejam suficientemente satisfeitas, a fim de que tais cuidados sejam internalizados pela criança, e, assim, ecoem em sua interioridade para uso futuro — como recursos psíquicos que continuarão a proteger aquele ser humano das inúmeras adversidades vindouras.
Em uma outra oportunidade, Winnicott (1962/1965) explora as facetas menos
felizes do início da troca inter-humana, chamando a atenção para as possíveis
consequências negativas dessa situação. Em “A integração do ego no desenvolvimento
da criança” ele dirá que quando uma mãe não consegue ser suficientemente boa, “a
criança não é capaz de começar a maturação do ego, ou então ao fazê-lo o
desenvolvimento do ego ocorre necessariamente distorcido em certos aspectos
vitalmente importantes” (p. 56). O infortúnio que essa situação traz para o bebê está no
fato de ele se sentir constantemente desprotegido em relação à sua própria precariedade
e ameaçado a cair; e é nesse contexto que ele apresenta o conceito de “ansiedade
inimaginável” ou “agonia impensável”, que, de acordo com sua descrição, poderia ser
associado às imagens “desintegração”; “cair para sempre”; “não ter conexão alguma com
o corpo”; ou, ainda, “carecer de orientação” (Winnicott, 1965, p. 56).
Winnicott compreende esse tipo de ansiedade como “ansiedades psicóticas”, cuja
principal característica é a ameaça de aniquilação, experiência bastante distinta da
ameaça de castração, uma vez que o medo envolvido na primeira não é apenas de perda
de parte de si ou do próprio corpo, mas de um desaparecimento de si, ou então, para
ser fiel ao termo “aniquilação”: medo de ser tornado nada — lembrando que nibilo, em
latim, significa “nada”.
Por meio das contribuições de Winnicott é possível, então, diferenciar uma
experiência de ausência que é vivida pelo ser humano (paradoxalmente) como presença,
daquela que é experienciada como ameaça de morte.
A possibilidade de uma criança descobrir e usar esse espaço (vazio de) potencial
(encontro) permite-lhe que venha acessar a solidão de maneira proveitosa. É esse tema
que ele traz em seu artigo “A capacidade para ficar só”, publicado em 1958, cuja
compreensão pode ser condensada a partir da seguinte ideia:
Embora muitos tipos de experiência levem à formação da capacidade de ficar só, há um que é básico, e sem o qual a capacidade de ficar só não surge; essa experiência é a de ficar só, como lactente ou criança pequena, na presença da mãe. Assim, a base da capacidade de ficar só é um paradoxo; é a capacidade de ficar só quando mais alguém está presente (Winnicott, 1958, p. 32).
Essa capacidade para ficar só na presença de alguém é, para Winnicott, uma
experiência que pode acontecer em um estágio bem precoce da vida humana, momento
no qual a imaturidade do ego deve ser compensada pelo apoio do ego da mãe: “à medida
que o tempo passa”, diz ele, “o indivíduo introjeta o ego auxiliar da mãe e dessa maneira
se torna capaz de ficar só sem apoio frequente da mãe ou de um símbolo da mãe”
(1958g, p. 34). Assim, a capacidade de ficar só depende da existência de um objeto bom
na realidade psíquica do indivíduo, que, aliada à confiança estabelecida nas relações
interpessoais, confere ao bebê certa autonomia para viver, de modo que seja
temporariamente capaz de “descansar contente mesmo na ausência de objetos ou
estímulos externos” (idem, p. 34).
Mais uma vez, temos com a ajuda de Winnicott a possibilidade de discriminar a
experiência de separação-vazio da de separação-nada, compreensão essa que ganha maior
clareza quando lemos, nesse mesmo artigo, a ideia de que uma pessoa pode estar num
confinamento solitário e, ainda assim, não ser capaz de ficar só: o quanto ela precisa
sofrer a fim de sustentar essa experiência, ele comenta, “está além da imaginação” (idem,
p. 32).
A possibilidade de viver a separação como continuidade de si e como continuidade
mesma da relação com o outro (ou então, viver a ausência como presença) abre para o
ser humano a capacidade de estabelecer certa intimidade com a experiência de morte, já
que a morte simbólica não é tomada aqui como desaparecimento de si, mas como
intervalo, ou, uma nova forma de existência, que pode, inclusive, ser enriquecida com
o vazio. Winnicott (1958n, p. 404), a esse respeito, comenta:
[…] o fornecimento de um ambiente suficientemente bom na fase mais primitiva
capacita o bebê a começar a existir, a ter experiências, a constituir um ego
pessoal, a dominar os instintos e a defrontar-se com todas as dificuldades
inerentes à vida. Tudo isto é sentido como real pelo bebê que se torna capaz de
ter um eu, o qual, por sua vez, pode em algum momento vir até mesmo a
sacrificar a espontaneidade, e até mesmo morrer. Por outro lado, sem a
propiciação de um ambiente inicial suficientemente bom, esse eu que pode dar-
se ao luxo de morrer nunca se desenvolve. O sentimento de realidade encontra-
se ausente, e se não houver caos em excesso o sentimento final será o de
inutilidade. As dificuldades inerentes à vida não poderão ser alcançadas, e menos
ainda o serão as satisfações.
Assim, é possível afirmar, junto a Winnicot, que o vazio fortalece o sentido de si,
ao passo que o nada traga o indivíduo para medos diante dos quais se vê sem recursos
para atravessá-los. Sem a possibilidade de sustentar o vazio, não é possível confiar, ou
seja, não é possível acreditar que após a experiência de morte simbólica possa haver nova
vida.
Mais tarde, em uma de suas últimas palestras, a 25 de outubro de 1970, poucos
meses antes de falecer, Winnicott (1984g) avançará na compreensão da experiência
humana de intimidade com a morte como sinal de maturidade, e dirá: “Há muito
crescimento que é crescimento para baixo. Se eu tiver uma vida razoavelmente longa,
espero encolher e tornar-me suficientemente pequeno para passar pelo estreito buraco
chamado de portas da morte” (p. 225). Aqui, temos uma apresentação da morte e do
vazio como “lugar amigo”, lugar reencontro com algo familiar, revisitação a uma relação
íntima cultivada ao longo dos anos; a morte e o vazio são apontados como destino final
do ser humano que demandam preparo de toda uma vida a fim de serem plenamente
vividos e até mesmo saboreados: “Deus, que eu esteja vivo na hora da minha morte”
(1989a, p. 3).
Vazio e nada na companhia de Safra
Gilberto Safra é conhecido por ser um psicanalista que vem realizando um trabalho
de excelência no estabelecimento de interface criativa e rigorosa entre psicologia clínica
e espiritualidade.
O clínico brasileiro acredita que o ser humano seja ontologicamente aberto —
disponível para o encontro, poroso à troca —, em todas as direções: é aberto “para baixo”
(em um sentido distinto daquele que utilizamos recentemente com Winnicott), ou seja,
para sua corporeidade, para as marcas de presença e ausência do outro afetivo em seu
corpo, o que quer dizer que é aberto para seu inconsciente (memória do vivido e do
não-vivido); também é aberto “para os lados”, para seus iguais humanos, para a Natureza
e para a Cultura; por fim, é aberto “para cima”, para o sentido das coisas, para os valores
para o ser, para o totalmente Outro (Safra, 2010).
A abertura para essa última dimensão, na compreensão de Safra (2006, p. 27), se
dá pelo fato de o Homem ser um ente finito que anseia pelo infinito; ou seja, é um ente
incompleto, faltante, limitado e instável, mas que busca pela totalidade, pela plena
realização de si, ou ainda, pelo “infinito atual”. À partir dessa compreensão, o autor
(2008, p. 104) afirma: “somos seres que anseiam pelo absoluto, e que ao longo de seus
caminhos sonham com a realização do que dormita no fundo de nós mesmos. Vivemos
atravessados pelo pressentimento de si, pela memória do ainda-não”.
Para Safra, a abertura humana “para baixo”, ou seja, aquela que diz respeito à interface psíquica com a corporeidade (contato com o inconsciente), tem sido investigada exaustivamente pela psicanálise desde as contribuições de Freud. Por sua vez, a investigação referente ao contato do psiquismo com a alteridade “lateral” — campo! Oração presente no rascunho autobiográfico de Winnicott intitulado Not Less Than Everything (The Collected Works of D. W. Winnicott: Volume 12).
dos objetos — vem ganhando cada vez mais atenção desde o surgimento das escolas de
relações objetais, e encontra-se atualmente em um estágio bem desenvolvido de sua
pesquisa. No entanto, diz Safra (2013, p. 94), “a terceira abertura fundamental do ser
humano” — referente ao contato do psiquismo com a dimensão não-representável do
Real — é “aquela que se encontra ainda por ser mais profundamente investigada”,
justamente pelo fato de ter sido, até o momento, apenas “tocada” pela psicanálise — o
que vem se dando, principalmente, a partir das contribuições de Bion (quando
menciona a realidade psíquica não-sensorial) e de Winnicott (ao apontar para a
possibilidade de um ser humano vir a crescer para baixo)
A abertura ontológica para o transcendente provoca no ser humano uma
“implacável necessidade” (Safra, 2006, p. 116) de formular concepções (discursivas e
imagíéticas) sobre o absoluto, ou então de se posicionar existencialmente diante dessa
dimensão — seja por meio de gestos, de uma configuração específica de seu cotidiano,
ou de práticas ascéticas. Dessa forma, Safra (2006, 2007, 2013, 2015) compreende que
a religiosidade e a espiritualidade são dois caminhos explícitos possíveis encontrados
pelo de ser humano para fazer frente a essa sua abertura originária.
A religiosidade se constitui na vida de alguém a partir de um cultivo de sua
concepção de absoluto, ou de divino. Para Safra (2013), cada pessoa começa desde
muito cedo a produzir imagens acerca daquilo que compreende ser um ente sem faltas,
sem limitações, ou seja, todo-poderoso. Ele denomina esse tipo de criação “imagens de
potência”, que são sempre projetadas em direção a uma ou mais figuras que seriam
supostamente portadoras da plenitude. Com frequência, há um grande investimento
energético (pulsional) por parte da subjetividade nessas imagens, que podem ser,
eventualmente, mais e mais reverenciadas ao longo de suas vidas.
O sentimento religioso, que participa da religiosidade de alguém, é movido pelo
anseio de encontro do indivíduo com o absoluto, ou ainda, com essa face do divino que fora criada ao longo de suas experiências de vida. Tal encontro é pressentido como tendo o potencial de promover a evolução de aspectos de seu self que não chegaram a se realizar nas relações inter-humanas; é pressentido, portanto, como “potência de ser”, ou, ainda oportunidade para “mais ser”.
No registro psíquico do fenômeno da religiosidade, afirma Safra (2007, p. 80), “o
divino é concebido como o elemento absoluto, no qual sempre é possível ver refletido o
próprio estilo de ser e no qual se estaria, eternamente, na experiência de júbilo e de
encanto”. O sentimento religioso porta, de acordo com essa citação, um caráter
narcísico, já que acontece por meio da suposição de que o divino teria um rosto em
conformidade às expectativas do indivíduo; esse sentimento também está carregado de
expectativas sobre qual seria a maneira por meio da qual o divino se apresentaria para o
indivíduo nesse suposto e tão esperado encontro. O sentimento religioso revela, assim,
o anseio do Homem em ser preenchido pelo divino, situação imaginada como a
satisfação final de suas necessidades. A partir dessa compreensão, entende-se que a
religiosidade é uma forma de entrar em contato com o absoluto por meio da qual esse
elemento é concebido de baixo para cima, ou seja, a partir das fantasias e especulações
humanas sobre tal dimensão?.
Safra nos aponta que tanto o sentimento religioso quanto a própria religiosidade
de alguém podem sofrer mutações, à medida que experiências significativas ou
construtivas são vividas ao longo do tempo no contato com a alteridade (fenômeno que
pode, inclusive, ser vivido no processo de análise), já que possibilitariam às imagens de
potência criadas pela subjetividade do indivíduo ganhar maior integração — superação
de idealização e de dissociação maniqueísta.
Ao lado dessas experiências integradoras das imagens de potência, um outro fator
que participa do amadurecimento ou, ainda, da “reorganização da matriz da
religiosidade” (Safra, 2015, p. 5) de alguém, é o que Safra denomina “experiência de
sagrado”. Isso se dá porque o sagrado, pelo fato de portar um altíssimo teor de alteridade
em relação ao ser humano, destitui qualquer organização psíquica excessivamente
onipotente, permitindo ao indivíduo relacionar-se com o absoluto de forma menos
narcísica, ou seja, a partir de uma postura de maior respeito à sua transcendência, na
qual reconhece e aceita a impossibilidade de ter sua experiência representada, controlada
pelo psiquismo.
A dimensão do sagrado possibilita assim um equilíbrio no processo de formação
da religiosidade, na medida em que, ao contrário do sentimento religioso — que acontece
a partir de uma postura afirmativa de reverência e solenidade diante do outro absoluto
—, conduz o indivíduo a seu lugar originário de humildade: esvaziamento de si,
abandono do controle onipotente. Pode acontecer, então, aponta Safra (2007, p. 81),
que em determinado momento do processo maturacional a experiência do sagrado
venha a integrar-se às imagens divinas presentes no psiquismo do indivíduo; quando
isso ocorre, “o sentimento religioso é também uma vivência do sagrado”.
O sagrado, na compreensão de Safra, é uma experiência de atravessamento para o ser humano, pois oriunda de fora do mundo — daquela dimensão da vida constituída pela comunidade humana ao longo do tempo, que lhe oferta guarida e sustentação. À fim de tornar mais palpável o que compreende pela expressão “fora do mundo”, Safra (2006, p. 119) toma como exemplo uma atividade cataclísmica, algo que surge da ? Safra explora essa situação em sua aula intitulada “O percurso da criatividade do ser humano em Marion Milner as ilustrações do livro de Jó de William Blake”, aula 6 do curso “Diálogos winnicottianos: a contribuição de Marion Milner”, realizado em 2010.
Natureza como força titânica e se apresenta para o mundo humano como um rasgo, já
que “pode, de repente, colocar o mundo humano em questão”. O sagrado também é
vivido pelo ser humano como algo vindo de fora de seu mundo, como algo que não é,
portanto, fruto de sua subjetividade, já que tem o poder de lhe transformar e de lhe
causar espanto e encanto, ao mesmo tempo.
Pelo fato de ser surpreendente e acontecer como atravessamento, ou seja, como a
visita de uma alteridade radical, a experiência com o sagrado também tem o efeito de
suspender a subjetividade do indivíduo que a vive, não o permitindo representá-la, ou
colocá-la sob domínio do eu. O sagrado, no entendimento de Safra, “fura” a
subjetividade humana, rompe o cotidiano do indivíduo, bem como o próprio “si-
mesmo”, não deixando espaço para que seja dominado por palavras ou imagens. É nesse
sentido que, segundo ele, “tendemos a viver essas interferências no fluxo da nossa vida
como a interferência de um outro” (Safra, 2006, p. 120).
As experiências com o sagrado impactam de forma muito contundente a vida
humana, sejam elas qualificadas pelo indivíduo como boas (agradáveis) ou más
(incômodas e disruptivas), umas vez que frequentemente alteram o sentido e a direção
de sua existência. À esse respeito, Safra (2013, p. 95) afirma:
Esta é uma situação muito complexa, em que o indivíduo se vê em meio a
turbulências de sentidos. O fundamento de sua vida e o sentido que ele construía
para si se perdeu. Á pessoa tende a experimentar, nessas condições, uma crise
psíquica e existencial. Por outro lado, ela passa a ter a possibilidade de acessar,
por meio da experiência disruptiva, um saber sobre o existir humano. Nesse
momento, o ser humano costuma ter a experiência de que o divino o visitou de
uma maneira terrível. Aqui não há encantamento, só um tremendo mistério e
terror. O sagrado acontece para o ser humano, portanto, como visitação, que o
afeta em três vértices: “do ponto de vista do conhecimento acontece como
Mistério, no vértice ético como Bem, e no estético como Belo/Tremendo”.
Essa experiência recebe tal nome justamente porque o próprio indivíduo reconhece
que o atravessamento vivido lhe foi extremamente significativo e, assim, passa a ocupar
um lugar especial em sua vida — sagrado, portanto —, tornando-o mais sensível a alguma
das dimensões do Real anteriormente citadas (Mistério, Bem e Beleza).
Mesmo não promovendo necessariamente uma experiência de prazer imediato, a visita do sagrado é guardada com muito carinho pelo indivíduo que a recebe; e,
eventualmente, quando recordada (tanto por meio da memória, quanto por meio de
outras experiências semelhantes) geralmente desperta alegria, pelo fato de estar associada a uma conquista inédita no campo de seu amadurecimento. Dessa forma, o critério fundamental para se reconhecer uma experiência com o sagrado não é tanto o prazer
imediato que ela promove, mas a transformação que gera na vida do indivíduo,
experiência essa que sua própria subjetividade jamais poderia lhe oferecer.
Ao lado da religiosidade, a espiritualidade também aparece como uma outra forma
de o ser humano destinar sua abertura “para cima”, para o absoluto, bem como de se
posicionar diante das experiências vividas com o sagrado. Safra (2015, p. 4) discrimina
os dois fenômenos, resumidamente, da seguinte maneira:
Enquanto a religiosidade se apresenta como anseio de comunicação/comunhão
com a divindade ou absoluto (re-ligare), a espiritualidade […] se mostra como
possibilidade de superar a dimensão representacional do psiquismo e pelo
acolhimento da experiência da morte do si mesmo, que situa a pessoa na
experiência de humildade.
A citação é elucidativa para o propósito da presente discussão, na medida em que
assinala que a espiritualidade é um caminho de morte do si mesmo; ou seja,
diferentemente da religiosidade, que se constrói inicial e fundamentalmente a partir de
projeções, adorações e criações de imagens de potência (de baixo para cima, ou seja, a
partir da perspectiva humana em direção ao inefável), a espiritualidade acontece como
um duplo movimento concomitante de esvaziamento de si e acolhimento de um Outro
(de cima para baixo). Nesse sentido, a espiritualidade está em sintonia com a experiência
de sagrado, já que tem a humildade como seu caráter fundamental.
A espiritualidade, no entendimento de Safra (2006, p. 116), “é o fenômeno que se
origina pela possibilidade de a pessoa pôr a si mesma e a sua existência em consonância
com a sua concepção do absoluto ou do divino”. Quando isso é possível, diz ele, o sonho
que a pessoa guarda dentro de si a respeito de seu futuro, de sua realização pessoal, se
presentifica por meio de seus gestos: “podemos dizer que seu gesto ganha um sentido.
Esse sentido não se encerra no aqui e agora, ele está para além. À partir de então essa
pessoa vive não só para o momento do agora, vive também para um sentido que a
transcende” (idem, ibidem).
A espiritualidade diz respeito, portanto, à tentativa de o indivíduo fazer encarnar
sua concepção de absoluto em seu cotidiano; e é a partir dessa especificidade no modo
de se relacionar com o absoluto que a espiritualidade se constitui por meio de gestos e
práticas, e não pelo cultivo reverencial de imagens de potência. Safra (2006, p. 117)
continua:
No momento em que o gesto está em sintonia com o que a pessoa concebe sobre o fim, ela acolhe em si, paradoxalmente, a transcendência constitutiva de si, que inicia a “des-criação do self”. Isso significa que ela acolhe a sua incompletude em um gesto de esperança. O sentido de sua existência é dado pela memória do futuro. Em outros termos, o seu gesto é vivido como transcendente em relação ao acontecimento no agora e o sentido de sua vida é vivido para além dela mesma.
Safra compreende que uma religiosidade, quando se desenvolve para além do
registro psíquico, pode se tornar também uma espiritualidade. A espiritualidade é uma
maneira de se posicionar diante do absoluto e do sagrado, mediante a qual revela-se
tolerância por parte do indivíduo em sustentar o vazio em si mesmo, o não-saber, o
silêncio, para que, eventualmente, um Outro possa se manifestar em sua interioridade e
vir a ser a própria expressão do si mesmo. Sendo esse um de seus aspectos fundamentais,
a espiritualidade não necessariamente precisa se manifestar e se desenvolver em meio à
linguagem ou a um universo simbólico religiosos.
A fim de tornar mais clara sua compreensão sobre o fenômeno da espiritualidade,
Safra oferece em seus trabalhos tanto exemplos pautados em figuras públicas quanto em
casos clínicos. À respeito da primeira situação, ele traz à memória uma experiência vivida
pela filósofa Simone Weil, ainda quando pequena, que marcaria sua vida de forma
contundente, e definiria seu posicionamento existencial e político futuro, ou seu
percurso espiritual.
Aos cinco anos chega até Simone a notícia de que em certos lugares do mundo
pessoas passavam fome. Simone se senta à mesa e em protesto não come, afirmando que
não vai comer se no mundo há gente passando fome. Nesse momento há uma
experiência da profunda ruptura que impõe uma questão muito ampla que, de repente,
se constitui em rumo para sua vida. Um rumo que ela levou às últimas consequências e
que constituiu o seu modo de fazer política, o seu modo de ser e a sua espiritualidade
(Safra, 2006, p. 120).
De acordo com a leitura de Safra, Simone Weil pôde, mesmo ainda criança, dar
direção para uma experiência de ruptura, iniciando a partir daquele momento um
processo precoce de “des-criação” de si. À notícia de que havia fome no mundo fez
Simone “despertar para o espírito”.
Mesmo tendo a oportunidade de seguir uma carreira acadêmica Simone abandona,
em certo momento de sua vida, o ensino de filosofia para empregar-se como operária,
com a intenção de sentir na própria pele as condições da classe trabalhadora. Safra
resgata essas e outras informações sobre algumas das escolhas fundamentais tomadas por
Simone em seu percurso, a fim de nos convidar a compreender que ela teria feito da
solidariedade o princípio existencial guia de sua vida. Ou seja, a solidariedade teria
participado como elemento central propulsor de sua espiritualidade, da morte de seu si
mesmo. Algumas passagens de sua vida tornam evidente a compreensão de que a
espiritualidade se constitui por meio de gestos, de ações no mundo.
Ao longo de sua experiência, Simone Weil alcançou mais e mais lucidez sobre o
processo de espiritualidade que ia constituindo, chegando a formular pensamentos
preciosos acerca do fenômeno de que estamos tratando. Em seu livro “O peso e a graça”,
ela afirma: “precisamos passar um tempo sem recompensa — nem real, nem
sobrenatural […] Amar a verdade significa suportar o vazio e consequentemente aceitar
a morte. À verdade fica do lado da morte”; ou ainda “aquele que suporta um momento
de vazio ou irá receber o pão sobrenatural, ou irá cair. Risco terrível — mas precisamos
corrê-lo, mesmo nos momentos sem esperança” (Weil, 2021, p. 45).
Por meio dessas e de outras afirmações, é possível perceber que a autora
compreendera o fenômeno da espiritualidade como um caminho de desapego. Ela
reconhecia que dentro de cada ser humano há um forte desejo de busca pelo absoluto;
mas também reconhecia que tal impulso originário poderia facilmente “estacionar” nos
objetos e fazer deles sua parada final. O desapego seria assim um “exercício espiritual”
para Simone, uma vez que libertaria o anseio pelo absoluto do aprisionamento com os
objetos, devolvendo-o a seu trânsito natural. A base desse exercício estaria na seguinte
recomendação: “descer até a fonte dos desejos para arrancar a energia de seu objeto.
Nesse ponto, os desejos — enquanto energia — são verdadeiros. É o objeto que é falso.
Mas a separação entre um desejo e seu objeto é um arrebatamento indizível para a alma”
(idem, p. 56). Esse arrebatamento para a alma é justamente o que está sendo
denominado aqui de “morte do self”; ou, em uma linguagem religiosa oferecida pelo
cristianismo “a crucificação do eu”.
A espiritualidade está sendo compreendida aqui, portanto, como uma forma
específica de um indivíduo destinar a experiência da ausência; ou ainda, de cuidar da
dimensão do sagrado, de manter aquilo que lhe visitou como sagrado em transcendência,
em constante estado de atravessamento de si — o que é oposto a tentar manipular tal
experiência e reduzi-la ao que lhe é familiar, ao Mesmo.
O termo “Mesmo” aparece em alguns textos de Safra, e é usado como referência à
compreensão que Levinas (1980) deu ao termo: redução do outro, redução da alteridade
àquilo que já é conhecido para o sujeito, ou seja, achatamento, perda da
tridimensionalidade, da vitalidade, da qualidade surpreendente da qual algo/alguém é
portador.
Em um artigo (não publicado) intitulado “O sagrado na situação clínica”, Safra
crítica o anseio característico da Modernidade — e que ressoa com vigor no mundo
contemporâneo — de instrumentalização da vida humana, uma vez que o autor
reconhece os vários prejuízos que tal projeto pode gerar ao nosso ethos. Diz ele, ao
abordar esse tema:
Testemunhamos [na atualidade] uma ênfase na nomeação como modo de
dominação do mundo e da vida, enquanto o ser humano encontra-se submetido
à hegemonia do Mesmo, aprisionado em um horizonte de vida de total
visibilidade. Esse horizonte de fenômenos coloca o ser humano sem a
possibilidade de experimentar a proteção da sombra, do oculto, do segredo, do
indizível, do mistério e fundamentalmente, do sagrado. Consequentemente,
assistimos o aparecimento de pessoas cujo modo de ser mostram total adesão aos
signos, aos nomes e aos instrumentos. Perspectiva que nos leva a perceber a
ocorrência de fenômeno muito estranho decorrente do mal estar inerente a
modernidade: a pessoa desenvolve uma subjetividade determinada por
fenômenos que se situam fora de si e não fundamentada na interioridade de si.
Na literatura psicanalítica encontramos discussões sobre a importância do desejo
como elemento constitutivo da interioridade da pessoa. No entanto, a partir da
modernidade, surpreendentemente, encontramos pessoas que se apresentam em
uma maneira de ser bidimensional, na qual a interioridade como que desaparece.
Nesses casos, o polo organizador do modo de ser dessas pessoas não se encontra
em seu interior, mas sim fora dela. À corporeidade, por exemplo, torna-se algo
a ser transformado por técnicas e por procedimentos. Desta forma, a questão do
desejo, a questão do corpo, a questão das facetas da interioridade do ser humano
não passíveis de serem conhecidas, se colocam sob o domínio de um anseio
técnico. No outro extremo, encontramos pessoas, que procuram escapar à
aderência a este mundo totalmente nomeado, buscando o niilismo como modo
de ser. Se por um lado este tipo de destinação as salva de se aparentarem
excessivamente com o mundo das coisas, dos objetos manufaturados, por outro
lado, as joga em angústias de grandes proporções, uma vez que acabam se
sentindo exiladas da própria condição humana (pp. 2-3).
Safra (2008) também nomeia esse fenômeno descrito acima de “desenraizamento
diante do sagrado”, cuja principal consequência é a instauração do Mesmo, e portanto,
o achatamento do próprio ser humano. O sagrado e, mais ainda, o cuidado que o ser
humano pode dispender diante da experiência do sagrado (preservando-o em seu
estatuto de absoluta transcendência) é o que pode nos proteger do Nada decorrente do Mesmo, uma vez que, para o autor o sagrado resiste a qualquer tentativa de
representação, nomeação ou conceituação”. Gilberto Safra nos fornece, dessa forma, uma leitura possível sobre a grande diferença entre vazio e nada, a partir da possibilidade humana em sustentar a
transcendência característica da alteridade, e assim, em sustentar a experiência de deixar- se ser atravessado pelo Outro, pelo Sagrado.
Vazio e nada na companhia dos místicos
Por meio das contribuições de Safra, podemos estabelecer certos critérios para diferenciar o místico de uma pessoa religiosa comum. O místico seria aquele que conseguiu alcançar maturidade em sua relação com o absoluto, ao passo que a pessoa religiosa comum mantém-se presa a uma série de identificações imagéticas com o absoluto, em uma relação de controle onipotente com o transcendente — ou seja, relaciona-se com essa dimensão por meio de uma distância defensiva. Um poema de autoria de Attar Neishaboiry (1142 1220), que aparece no filme “Baba Aziz — o príncipe que contemplou sua alma”, dirigido por Nacer Khemir (lançado em 2005), ajuda-nos a compreender tal diferença:
As pessoas são como as três borboletas em frente da chama da vela.
A primeira se aproximou da chama e disse: “eu sei o que é o Amor”.A segunda tocou a chama com as suas asas e disse: “eu sei quão dolorosa pode a ser a chama
do Amor”.A terceira jogou-se no meio da chama, e por ela deixou-se devorar. Essa sabe o que é o
verdadeiro Amor…
O místico seria aquele que, em sua busca por contato com o divino, suporta o vazio nessa relação, suporta manter Deus sem imagem dentro de si, ou então, sustenta a experiência de relacionar-se com Deus em transcendência, evitando torná-lo imanente — mais um objeto manipulável por sua vontade. Outra vez com Weil (2020), podemos compreender a posição corajosa e ousada do místico:
Em qualquer situação, se a imaginação preenchedora for detida, há vazio (pobres
de espírito). Em qualquer situação (mas, em algumas delas, pelo preço de que rebaixamento!), a imaginação pode preencher o vazio […] Suspender continuamente em nós mesmos o trabalho da imaginação preenchedora de vazios. (pp. 52-53).
Para a filósofa, “todos os pecados são tentativas de preencher vazios” (Weil, 2020,
p. 58). No entanto, nem todo preenchimento é pecaminoso, ou seja, é tentativa covarde
de escapar da e negar a precariedade humana, já que “a graça preenche; mas ela só pode
entrar onde há um vazio para recebê-la — e é ela mesma que faz esse vazio” (idem, p.
44). O preenchimento devido é aquele que acontece por graça, e não por ação humana. Assim, cabe ao ser humano apenas disponibilizar-se para receber aquilo que ele mesmo
não pode se proporcionar: “Aquele que suporta um momento de vazio, ou irá receber o pão sobrenatural, ou irá cair. Risco terrível — mas precisamos corrê-lo, mesmo nos
momentos sem esperança (p. 45). Ou, ainda: “Em tudo, para além de qualquer objeto
particular, devemos querer no vazio, querer o vazio. Pois o bem que não pode ser representado nem definido é um vazio para nós. Mas esse vazio é mais pleno do que todos os plenos” (p. 47).
É comum que os místicos adotem uma postura apofática diante de Deus, ou ainda, um caminho negativo de aproximação ao e de conhecimento do divino, do sagrado, do transcendente. Segundo o teólogo cristão Vladimir Lossky (1976):
O caminho negativo do conhecimento de Deus é um empreendimento ascendente da mente que elimina progressivamente todos os atributos positivos do objeto que deseja alcançar, a fim de culminar finalmente em uma espécie de
apreensão pela suprema ignorância d’Aquele que não pode ser um objeto de conhecimento. Podemos dizer que é uma experiência intelectual de fracasso da mente quando confrontada com algo além do concebível. De fato, a consciência do fracasso da compreensão humana constitui um elemento comum a tudo o que podemos chamar de apofatismo (p. 13).
Ainda que extremamente respeitosa à inacessibilidade do Ser divino, é necessário
ter claro que a teologia apofática não se apresenta como uma modalidade de
agnosticismo (recusa do conhecimento); mas, ao contrário, tenciona ser um princípio
criterioso para aproximar-se de seu objeto de investigação. Tal teologia se realiza por
meio uma postura de profunda humildade diante do desconhecido, ainda que guarde
em si o anseio de um encontro verdadeiro com Aquele diante do qual se debruça.
Essa perspectiva será fartamente encontrada nos escritos de um outro místico
cristão, Mestre Eckhart, que assinala o vazio como lugar humano por excelência — único
lugar capaz de oferecer ao ser humano a experiência de serenidade. Encontramos a defesa
do vazio, da pobreza/pureza espiritual e, ainda, do desapego nas seguintes passagens de
seu livro da Divina Consolação:
Um vaso não comporta duas qualidades de bebida. Se se destina a conter vinho, é preciso despejar a água; o recipiente tem de estar vazio e livre. Da mesma forma, se quiseres acolher a Deus e sua divina alegria, forçoso te é que despejes primeiro as criaturas (Eckhart, 2016, pp. 21-22).
Tudo o que deve acolher e ser receptivo deve necessariamente estar vazio. Dizem os mestres: Se o olho, no ato de perceber, tivesse em si alguma cor, ele não perceberia a cor que tem, nem a que não tem; é por carecer de todas as cores que ele conhece todas as cores. À parede tem uma cor, e por isso ela não conhece a própria cor, nem qualquer outra, e não se alegra com a cor, nem o ouro a alegra mais que o azul ou a cor do carvão. O olho não tem cor, e não obstante a tem, no sentido mais verdadeiro, pois conhece-a com prazer e deleite e alegria. E quanto mais perfeitas e puras são as forças da alma, tanto mais perfeita e complexivamente acolhem o que apreendem, e tanto mais recebem e se deleitam, e tanto mais se tornam uma só coisa com aquilo que percebem; tanto assim que afinal a força suprema da alma, despida de todas as coisas, e nada compartilhando com coisa alguma, recebe em si nada menos que o próprio Deus com toda a abundância e plenitude do seu ser […] Eis por que diz Nosso Senhor em significativa passagem: “Bem-aventurados os pobres de espírito” (Mt 5,3).
Pobre é o que nada tem. Ser “pobre de espírito” quer dizer: assim como o olho é pobre e destituído de cor e suscetível a todas as cores, assim o pobre de espírito é receptivo para todo o espírito, e o espírito de todos os espíritos é Deus. O fruto do espírito é o amor, a alegria, e a paz. O estar desnudo, o ser pobre, o nada ter, O estar vazio, transforma a natureza; o vazio faz a água subir morro acima e outras coisas maravilhosas (idem, p. 23).
Ao lermos Eckhart, podemos pensar que o desapego é compreendido por ele como
uma experiência necessária de castração simbólica em nível espiritual, ou seja, como
possibilidade que um ser humano tem em se relacionar com o Outro (objetos, pessoas,
com a Natureza, etc.) de modo a incluir um terceiro — Deus — nessa mesma relação.
Para o Teólogo alemão, a vivência do nada está justamente relacionada à decepção que
o ser humano tem em descobrir que o objeto no qual investiu toda sua energia não vem
a suprir suas necessidades. Esse tipo de relação não castrada com o existente gera
“desconsolo” para o indivíduo, toda fonte de nosso sofrimento e aflição.
Eckhart descreve abaixo a tendência humana para querer se apropriar dos objetos
do mundo e com eles se preencher; e, em seguida, faz sua proposta terapêutica:
O meu coração e o meu amor apropriam à criatura o Ser Bom que é propriedade de Deus. Volto-me para a criatura, fonte natural de desconsolo, e viro as costas a Deus, fonte de toda consolação. E acho estranho que entre a sofrer e a sentir- me triste. Em verdade, nem Deus nem o mundo inteiro seriam capazes de proporcionar verdadeira consolação ao homem que procura consolo nas criaturas. Mas quem na criatura só amasse a Deus e só em Deus amasse a criatura, este encontraria, em toda a parte, consolação verdadeira, merecida e sempre igual (pp. 12-13).
A frase grifada, “quem em Deus amasse a criatura”, revela o tipo de disposição que
o ser humano deveria adotar em seu cotidiano a fim de não enfrentar o nada, já que “em
Deus não há tristeza, nem sofrimento, nem desventura” (idem, p. 9). O amor castrado
possibilita ao ser humano usufruir do encontro com as criaturas, com o Outro, sem
correr o risco de despencar no desconsolo, na perda. Esse posicionamento existencial os
permite viver em serenidade.
Penso que os assinalamentos aqui apresentados de Weil e Eckhart, autores que para
Riviali (2013) encontram-se em profunda sintonia”, dão-nos dimensão da experiência
que foi demandada de Ping no conto do pote vazio, e que, de certa forma, é demandado
no cotidiano de todo ser humano, de maneiras diversas. Como cada um de nós dá espaço
para que o vazio faça revelar a verdade, ou, ainda, ofereça oportunidade para o
aparecimento do amor (uma vez que “sem vazão pelo vazio, não há potência amorosa”
(Pinotti, 2023, p. 17)? Como cada um de nós permite ou não que fantasias
preenchedoras ocupem o sagrado vão por onde a realização — tão mencionada por Elton
Pinotti em seu doutorado — poderia se dar?
Tendo isso em vista, podemos pensar que a tarefa fundamental da vida de cada ser
humano seja cuidar de seu vazio, dele se aproximar, dele se familiarizar, se amigar, e
assim, cultivá-lo em estima; somente por meio desse contínuo gesto de cuidado é
possível “haver”:
Haver é como denomino então a dimensão da potência das infinitas possibilidades de ser realizado, ou seja, o vazio como condição para a formação da multiplicidade. Pois sem o Vazio, nada poderia ser na realização da transingularidade. Nada, a não ser um verdadeiro nada. Em cada realização, o haver se apresenta, explicitamente, no máximo enquanto presença de uma ausência, como uma indeterminação empírica, como esse infinito imanifesto prenhe de possibilidades […] É preciso situarmos a positividade da inexistência. O vazio, basta não o ver para vê-lo, percebida ou desapercebidamente (Pinotti, 2023, p. 267).
Volta para Ping e seu pote cheio de vazio
O conto de Ping é muito inspirador e nos faz questionar com quanta coragem ou
covardia temos cuidado de nossas vidas, das decisões que tomamos no cotidiano, enfim,
de nossas estratégias existenciais para lidar com os desafios trazidos pela realidade. No
entanto, parece-me fundamental que tenhamos em mente o papel de sustentação que o
pai de Ping realizou, a fim de que o rapaz pudesse ir até o fim de sua jornada de relação
com o vazio.
É muito comum que tomemos o indivíduo como herói em situações como essa, e
esqueçamos de toda a sustentação que ele recebeu a fim de tornar-se vitorioso em seu
percurso. A prática clínica nos possibilita dar maior visibilidade para esse fenômeno — a
sustentação, ou /olding, como foi apresentado por Winnicott em diversas
oportunidades. Assim, a situação clínica é lugar dos bastidores, da construção do
3. Ver Léternel dans le fini: Rencontre de Maítre Eckhart et de Simone Weil 2013)
invisível, do encontro com o silêncio que permitirá alguém vir a ser, eventualmente,
corajoso em seu cotidiano e sustentar o vazio enriquecedor em suas relações
interpessoais, bem como sustentar as inúmeras experiências de morte que a vida
constantemente lhe demanda.
Certa vez, Winnicott (1967c) chamou atenção para o papel de espelho que a mãe
realiza diante de seu bebê, no momento em que esse ainda não é. O reconhecimento
que ela faz dos gestos do lactente é o início da sensação desse vir a estabelecer uma
identidade, alcançar a experiência de ser, da autenticidade, da criatividade, da existência
de si mesmo. É interessante notar que o conto de Ping traz o papel realizado pelo pai,
papel esse de sustentação da própria identidade, dos valores e princípios pessoais frente
às adversidades da vida. Podemos pensar, aqui, que a mãe gera, fornece, inicia um
processo que terá que ser continuamente sustentado ao longo do tempo — experiência
essa que exige tenacidade do self; faceta masculina do si mesmo. Assim, elementos
femininos e masculinos estão constantemente se entrelaçando a fim de que atravessemos
nossas existências e possamos nos posicionar diante das exigências mesmas do existir.
Dessa forma, leio o conto do pote vazio tanto como exemplo de coragem e de
pureza de um indivíduo, quanto de assinalamento da necessidade que temos do Outro
em nossas vidas, a fim de que possamos realizar a tão árdua Travessia: a sustentação do
Vazio.
Essa perspectiva nos permite, portanto, lançar mais um sentido para a
diferenciação entre vazio e nada: vazio é a ausência vivida como presença silenciosa do
Outro, ao passo que o nada é ausência total da alteridade, ou seja, é experiência de
inferno. Há uma passagem contada por São Macário, que aparece no livro do teólogo
contemporâneo John Zizioulas “Communion and otherness’, que define o inferno
justamente como lugar no qual não se encontra o Outro:
Caminhando um dia no deserto, encontrei o crânio de um homem morto, caído
no chão. Enquanto eu a movia com minha bengala, a caveira falou comigo. Eu
disse a ela: “Quem é você?” À caveira respondeu: “Eu era um sumo sacerdote
dos ídolos e dos pagãos que habitavam este lugar; mas você é Macário, o Portador
do Espírito. Sempre que você tem pena daqueles que estão em tormentos e ora
por eles, eles sentem um certo alívio.” Eu perguntei a ele: “O que é esse alívio e
o que é esse tormento?” Ela lhe disse: “Tanto quanto o céu se afasta da terra,
tanto é o fogo abaixo de nós; nós mesmos estamos de pé no meio do fogo, dos
pés até a cabeça e não é possível ver ninguém face a face aqui, pois o rosto de um
está fixo nas costas do outro. No entanto, quando você ora por nós, cada um de
nós pode ver um pouco o rosto do outro. Tal é a nossa trégua (Zizioulas, 2006, p. 3).
Referência bibliográfica
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