O apofatismo winnicottiano a respeito do Self e suas implicações clínicas

1 João Pedro Javera

2 GIlberto Safra


1 Mestre em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo (USP). Doutorando pela mesma instituição. Exerce a Psicologia Clínica em consultório particular e como acompanhante terapêutico desde 2007. Integrante do laboratório Prosopon no IPUSP. E-mail: jpjavera@hotmail.com.

2 Professor titular no departamento de Psicologia Clínica da Universidade de São Paulo (USP). Coordenador do Laboratório Prosopon, que tem como objetivo estabelecer um diálogo interdisciplinar entre a Clínica e a Filosofia contemporânea, privilegiando estudos que se debruçam sobre a questão da pessoalidade do ser humano e sua fragmentação a partir da modernidade. E-mail: iamsafra@yahoo.com.


1 Introdução

Desde seu nascimento, a Psicanálise vem se revelado dependente da palavra para efetivar sua proposta terapêutica. Freud fez da interpretação o método privilegiado para que seus pacientes viessem a ter acesso à dinâmica inconsciente que atuava na produção do sintoma neurótico. Pode-se reconhecer uma orientação iluminista no modo de clinicar e de produzir conhecimento da perspectiva freudiana, uma vez que o anseio de trazer luz ao terreno oculto e misterioso do subsolo humano, por meio da interpretação, é marca de sua personalidade analítica e da epistemologia a ela atrelada.

A pesquisa psicanalítica realizada nas décadas de 1950 e 1960 trouxe constatações contundentes acerca da etiologia do sofrimento psíquico, uma vez que passou a voltar sua atenção para a forma como a constituição subjetiva de pacientes esquizofrênicos, psicóticos e borderlines se dava. O interesse nessa modalidade de sofrimento, bem como seu acolhimento clínico, fez a Psicanálise ampliar sua compreensão sobre a formação das patologias humanas para além do campo das neuroses – o que implicou uma reformulação de sua psicologia e de sua técnica de trabalho.

Tendo, agora, de lidar com pacientes que não acessavam os recursos simbólicos sofisticados da palavra, muitos analistas recorreram a estratégias relacionais que pudessem estabelecer com aqueles uma comunicação não verbal ou indireta; o corpo e suas manifestações sutis passam a ser ferramenta de trabalho essencial dessa perspectiva. Assim, o setting analítico se tornará mais sensível ao campo da estética, à sutileza transmitida nos gestos, às distintas qualidades de silêncio e à plasticidade criativa presente na comunicação dos analisandos.

De uma Psicanálise que fora fundada na Biologia – e que apresentava o ser humano como homo natura –, o novo movimento que acontecia nesse campo científico apontava para as questões de dimensões existenciais, como aquelas que mais caracterizavam a dor de seus pacientes. A categoria do “ser” adentra na esfera das preocupações clínicas dos psicanalistas; e o drama humano deixa de estar pautado no conflito pulsional intrapsíquico para ser compreendido nos campos interrelacional e existencial: “quão genuíno eu sou em minhas ações e decisões cotidianas?”; “o quão próximo estou de mim mesmo?”; “qual sentido de minha vida?” – são as questões que os pacientes da psicanálise trarão para os consultórios, as quais passarão a instigar a atenção de muitos psicanalistas daquelas décadas.

Donald Winnicott é certamente um deles; e tal fato se evidencia na categoria antropológica a que vai se apegar – o self. Não mais o “sujeito do desejo” será o modelo de homem almejado, mas a constituição de um si mesmo autêntico é que será a tarefa-guia de sua proposta terapêutica. Ao longo de sua prática, o pediatra e psicanalista inglês reconhecerá que a sutileza característica do self humano demanda a existência de um ambiente extremamente empático e adaptativo para que possa emergir e amadurecer. Descobrirá, também, que a palavra nem sempre é o melhor recurso analítico para que a revelação desse centro identitário existencial se dê; encontrará, assim, no “brincar”, uma atividade com maior potencial de comunicação daquilo que é mais essencial, isto é, a marca profundamente singular de uma pessoa. No brincar, o ser humano pode se comunicar silenciosamente, o que vai ao encontro das demandas do self central – elemento paradoxal que habita a interioridade humana, marcado por profunda reserva e privacidade.

Ao deslocar o fazer psicanalítico (até então assentado na interpretação) para a área transicional do brincar, Winnicott implementará mudanças radicais na epistemologia subjacente a esse campo. Este artigo se propõe a analisar algumas das causas e consequências dessas transformações. Por meio do que denominaremos de postura “apofática”, encontramos uma via para fundamentar essas reformulações feitas por Winnicott no campo da ética e da técnica.

Loparic (1995) e Fulgêncio (2015) apostam que a influência existencialista na abordagem antropológica e psicológica winnicottiana seja um fator relevante para se considerar a mudança de paradigma que Winnicott teria efetuado na Psicanálise; não excluindo tal hipótese, nós adicionamos mais uma: a presença do apofatismo – ainda que implícita – no seu modo de compreender a interioridade do ser humano. A perspectiva apofática, que recebeu bastante atenção da teologia cristã, nos parece comunicar uma marca muito singular da clínica de Winnicott: seu respeito profundo pela transcendência humana.

A Antropologia Psicanalítica tradicional, pelo fato de ter sido desenvolvida em uma mentalidade muito identificada com o horizonte materialista, naturalista e determinista (frequente no meio científico em que Freud edificou seu pensamento), acabou por achatar ou negligenciar dimensões complexas da condição humana. Winnicott resgata o ser humano da imanência pura a que havia sido lançado e faz recuperar sua dignidade transcendente. Um novo sopro de respeito ao mistério humano faz, assim, arejar a Antropologia Psicanalítica.

Vejamos em que consiste a tradição apófática e por que decidimos nela incluir o nome de Winnicott.

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