A PRÁTICA DO SILÊNCIO COMO CUIDADO DE SI

João Pedro Jávera

Recentemente escrevi um artigo sobre algumas diferenças fundamentais possíveis de serem encontradas entre a experiência de “nada” e “vazio”, utilizando-me da companhia de alguns pensadores – clínicos, filósofos e místicos[1].  Logo após a conclusão dessa escrita, deparei-me com uma entrevista que Andréa Bomfim Perdigão realizou com Gilberto Safra, intitulada “Experiência de Lugar”, contida no livro “Sobre o silêncio”.  Penso que o que Safra traz na conversa em questão reabre o tema tratado anteriormente, em nova perspectiva. Dessa forma, o presente artigo pode ser tomado como continuidade do anterior, ou ainda, como aprofundamento das questões ali expostas.

Desta vez, trarei para dialogar com a contribuição de Safra alguns apontamentos feitos pelos filósofos Michel Foucault (2009) e Pierre Hadot (2005; 2014), pensadores que transitaram entre os campos da filosofia e da espiritualidade, cada um à sua moda, e que em determinado momento de seus percursos acadêmicos introduziram para seus alunos e leitores, respectivamente, as concepções de “cuidado de si” e “exercícios espirituais”– tão presentes no discurso das várias escolas da filosofia antiga, mas esquecidas pelo universo filosófico contemporâneo.

Por fim, o texto encaminha o leitor para o questionamento acerca do uso que os psicanalistas da atualidade têm feito do silêncio em suas práticas clínicas a fim de auxiliarem seus pacientes a entrarem em contato com essa mesma dimensão, e nela encontrarem o devido direcionamento para suas escolhas, bem como a sustentação para os novos posicionamentos que as demandas de suas vidas exigem.


[1] Vazio e nada: possíveis destinos da experiência de ausência, https://theoutsiders.psc.br/vazio-e-nada-possiveis-destinos-da-experiencia-de-ausencia/

A relação de Safra com o silêncio

Safra, na entrevista concedida a Andréia Bomfim Perdigão (2005), inicia o diálogo apresentando uma visão mais filosófica e analítica que concebe sobre o silêncio, bem como sobre as implicações que sua prática ou impossibilidade de sua prática no cotidiano trazem para a vida humana contemporânea, para, finalmente, compartilhar a visão pessoal e íntima que vem estabelecendo com esse estado desde muito cedo em sua vida. Em determinado momento da conversa, ele revela:

O silêncio sempre me foi muito querido. Quando era garoto, eu amava o silêncio. Eu conheci o silêncio primeiro com a face da presença. Eu me recordo de situações quando ia na casa dos meus avós. Meu avô trabalhava como ferreiro, ele fazia carrocerias, e havia sempre um local onde eu me sentava, depois que tinha brincado com os meus primos. Eu ficava um pouco quieto lá, vendo o meu avô trabalhar ou vendo as pessoas passarem na rua, e era um momento em que eu ficava em silêncio — que era um silêncio, para mim, muito especial, porque era um “silêncio-presença”. Era um momento em que eu ficava quieto-quieto-quieto, mas me sentia sentado no colo de Deus. Era muito bom! Quando volto, hoje em dia, a reencontrar esse tipo de silêncio, eu gosto muito (p. 119).

No artigo anterior, já mencionado, apresento que para Safra (2013, 2015) cada pessoa é tocada por algumas dimensões do Real que a marcam profundamente e que são eventualmente reconhecidas por ela como “experiências de sagrado” – experiências que causam júbilo, ou até mesmo terror, tamanho o impacto que determinado encontro causa em sua subjetividade, tamanho o nível de atravessamento que essa faceta do Real instaura para quem a experimenta. Tais experiências de sagrado são guardadas com muito carinho por quem as vive, eventualmente, podem vir a ser sua via de entrada para o estabelecimento de uma espiritualidade pessoal. A partir do relato de Safra, podemos inferir que o silêncio foi descoberto por ele como experiência de sagrado, e que ele pôde cuidar dessa dimensão do Real em sua vida – ou seja, pôde cultivá-la em seu cotidiano a fim de que o acompanhasse: fez do silêncio um amigo!

Tal como Safra (2015) nos ensina, as experiências de sagrado podem alcançar maturidade na vida de alguém quando são mantidas em sua vida como atravessamento, como alteridade radical – o que é bastante distinto de tentar manipular tais marcas a fim de que sejam preenchimentos, consolos, ferramenta narcísica para a sustentação de uma identidade. O trecho da entrevista abaixo apresentado nos faz entender que Safra vem tendo sucesso em preservar ao longo dos anos a experiência do silêncio enquanto visita do Real[2]:

Eu conheci o silêncio como presença, então ele nunca foi uma coisa ruim. Ele era uma coisa que me acolhia, me envolvia, era algo em que eu me situava. Para mim, desde sempre, se o amor tinha uma face, a face era a do silêncio. Ao longo do tempo, uma das coisas que eu fui percebendo é que o silêncio era mais fundo e, portanto, mais significativo, quando ele não era presença, mas uma possibilidade; quando ele era uma expectativa, um lugar. Então, ao longo dos anos, fui compreendendo que a experiência fundamental do silêncio era essa de lugar, e que a própria presença fechava esse lugar, ela desfazia a possibilidade. Então houve uma mudança. Foi um caminho pessoal (p. 119, grifo nosso).


[2] Safra (2006, p.53) se utiliza do termo “Real” com maiúscula para referir-se à faceta da existência que “está para além de qualquer possibilidade de simbolização”. Quando ele se refere a esse termo não o está utilizando dentro da perspectiva lacaniana.

A partir das concepções de vazio que foram levantadas no artigo anterior, é possível afirmar que Safra, em certo momento de sua vida, veio a acessar o silêncio como vazio – não mais como algo exclusivamente reconfortante (“presença”), mas como lugar, posição. Ele diz acima: “a própria presença fechava esse lugar, ela desfazia a possibilidade”; compreendo essa frase como o testemunho do amadurecimento de uma relação, uma vez que, aqui, o silêncio já não estava mais posto em um lugar familiar, conhecido, mas apresentava para seu interlocutor toda sua alteridade, sua insondabilidade, sua irrepresentatividade. Só é possível sustentar uma relação com tal teor de estranhamento a partir do estabelecimento de intimidade.

Sendo um profundo amigo do silêncio, ou seja, tendo autoridade sobre o tema a partir de dentro, da experiência pessoal, Safra discorre sobre a necessidade que essa dimensão tem para sua integridade psíquica e espiritual, bem como para todo ser humano. Sobre essa função curativa do silêncio, ele diz:

Em minha interioridade, há algo em mim mesmo que sempre está em silêncio. Eu sinto que vou em direção às pessoas e às coisas. Mas, na minha forma de ser, não consigo ficar muito nesse tempo de colocar-me em direção ao mundo […] se não fizer isso [voltar-me para o silêncio], em qualquer situação, eu me canso. Na alma. Eu preciso retomar ao silêncio, é uma necessidade para mim (p. 121, grifo nosso).

Essa frase me chamou bastante atenção, uma vez que nela é apresentada a relação entre alma e silêncio. Recorro a Edith Stein, uma grande interlocutora de Safra, cuja contribuição se faz presente em muitos de seus escritos, para quem a alma guarda justamente a característica de poder sair de si mesma, pois é essencialmente desejante, e apresenta disponibilidade para interação com o mundo. Segundo Kusano (2009), leitora de Stein, a alma humana se revela:

[…] capaz de sair de si mesma e penetrar no interior das coisas e de outros sujeitos e, da mesma forma que está aberta ao mundo, ela pode voltar-se sobre si mesma e captar a sua própria interioridade. Esta característica é a marca da alma espiritual no homem, que faz dele uma pessoa livre e espiritual e distinta de todos os seres da natureza (p. 69).

É verdade que a alma tem essa possibilidade de lançar voo para o encontro, ou ainda, para envolver-se, imiscuir-se com o outro e, por fim, retornar para si; no entanto, é possível que ela venha a perder-se no mundo, na fricção com as coisas, e voltar para “casa” bastante desfigurada. Para o teólogo Paul Evdokimov (1986), “em função da imagem”, ou seja, devido ao fato de ser criatura feita à imagem de seu criador, o ser humano sempre procura o absoluto, “mas a semelhança, fora de Cristo, fica inoperante, o pecado perverte a intencionalidade da alma e essa procurará o absoluto nos ídolos, matará sua sede nas miragens, sem poder ascender a Deus” (p. 83, grifo nosso).

Pelo fato de esse retorno da alma a seu centro não ser algo dado, ou seja, pelo fato de ser dependente do uso consciente da atenção do ser humano, cabe a cada pessoa cuidar de sua alma, cuidar da disponibilidade de sua alma, ou, ainda, mantê-la pura, ou seja, descontaminada de tudo aquilo que possa corrompê-la e desviá-la de sua vocação, de seu objetivo maior: a transcendência de si, o encontro com o verdadeiro Amante, já que “a alma humana anseia tornar-se Outro” (Safra 2010).

Sendo, portanto, uma entidade desejante que precisa ser direcionada, a alma demanda um cuidado específico; por meio da maneira que Safra apresenta seu relato, é possível compreender que ele realiza essa tarefa (preserva a pureza de sua alma, a integridade de sua interioridade), por meio da prática do silêncio. Isso aparece em outra passagem da entrevista:

Eu diria que o silêncio é o estado mais necessitado e, na maior parte das vezes, o mais temido. Porque o silêncio é a possibilidade que o indivíduo pode vir a ter, de estar posto em si e na vida, de maneira a pôr entre parênteses – e esquecer – tudo aquilo que o define social e psicologicamente. O silêncio é a oportunidade do indivíduo se desvestir, para poder, de fato, estar numa situação tal em que ele é pura posição. Para mim é muito claro que não há possibilidade de um gesto realmente significativo ou de um pensamento que de fato tenha um porte, que não brote de áreas experienciais silenciosas. Agora, isso é uma coisa muito complicada para a maior parte das pessoas, justamente porque o silêncio joga o ser humano em uma situação em que ele só pode ser lugar, sem ficar pendurado em palavras ou imagens. A possibilidade de estar nesse tipo de lugar depende do quanto a pessoa consegue estar despregada de tudo aquilo que, de alguma maneira, seria adereço de personalidade e de forma de ser (p. 113, grifo nosso).

O resultado dessa “prática-de-cuidado-de-si” por meio do cultivo do silêncio está referido na frase “para mim é muito claro que não há possibilidade de um gesto realmente significativo ou de um pensamento que de fato tenha um porte, que não brote de áreas experienciais silenciosas”. Essa afirmação acaba por estabelecer uma relação direta entre silêncio e encontro com a autenticidade de si, ou ainda, com a verdade. Essa semântica contida na ideia de cuidado como sustentação da pureza da alma, a fim de que o acesso à verdade se torne possível, me remete a um livro de Foucault (2009), cujo título é “A hermenêutica do sujeito”, e que, segundo o filósofo e teólogo russo, Sergei Horujy (2010), é sem dúvidas, o trabalho mais significativo do autor [3].


[3] Em “Practices of the Self and Spiritual Practices” Michel Foucault and the Eastern Christian Discurse”, Horujv afirma: “The Final period of this philosopher stood out here in a bright light, and it became perfectly clear out here in a bright light, that there was indeed a ‘last year of the poet’ in Foucault’s life (p. xxiii).

O cuidado de si e o acesso do sujeito à verdade

Na primeira aula registrada nesse livro, o filósofo francês chama atenção para o fato de que o preceito délfico “conhece-te a ti mesmo” (gnôthi seautón) está diretamente atrelado, ou melhor, subordinado ao princípio do “cuida de ti mesmo” (epimeloû heautoû), uma vez que o primeiro aparece no quadro mais geral do cuidado de si, “como uma das formas, uma das consequências, uma espécie de aplicação concreta, precisa e particular, da regra geral”, pois, ainda segundo Foucault, “é preciso que te ocupes contigo mesmo, que não te esqueças de ti mesmo, que tenhas cuidados contigo mesmo. É neste âmbito, como que no limite deste cuidado, que aparece e se formula a regra ‘conhece-te a ti mesmo’” (Foucault, 2009, p. 7). Foucault nos ensina que Platão teria apresentado seu mestre, em “A apologia de Sócrates”, como aquele que essencialmente, fundamental e originariamente, tem por função, ofício e encargo incitar os outros a se ocuparem consigo mesmos, a terem cuidados consigo e a não descurarem de si. Em uma das passagens da apologia, Platão traz à memória a censura que Sócrates teria sofrido, no momento de sua sentença, por estar em uma situação tal que dela deveria ter vergonha. A acusação a ele feita diz:

“confessa que é vergonhoso ter levado uma vida tal que agora te encontres diante dos tribunais, que agora estejas sob o golpe de uma acusação, que agora corras o risco de seres condenado e, até mesmo talvez, condenado à morte. Para alguém que levou um certo modo de vida, que não se sabe bem qual foi, mas tal que se arrisca a ser assim condenado à morte após um julgamento como este, afinal, não há nisto alguma coisa de vergonhoso?” Diante de tal acusação, Sócrates teria respondido: “Atenienses, eu vos sou reconhecido e vos amo; mas obedecerei antes ao deus que a vós; enquanto tiver alento e puder fazê-lo, estejais seguros de que jamais deixarei de filosofar e de ministrar ensinamentos àquele dentre vós que eu encontrar”.

E qual seria o ensinamento que Sócrates daria se não fosse condenado, uma vez que já o havia dado antes da acusação, tantas vezes a seus compatriotas? pergunta-se Foucault; ao que ele mesmo responde:

Meu caro, tu, um ateniense, da cidade mais importante e mais reputada por sua cultura e poderio, não te envergonhas de cuidares (epimeleîsthai) de adquirir o máximo de riquezas, fama e honrarias, e não te importares nem cogitares (epimelê, phrontízeis) da razão, da verdade e de melhorar quanto mais a tua alma?”. Sócrates evoca, pois, o que sempre disse e que está decidido a continuar dizendo a quem vier a encontrar e a interpelar: ocupai-vos com tantas coisas, com vossa fortuna, com vossa reputação, não vos ocupais com vós mesmos (2009, p. 8, grifo nosso).

Foucault chama atenção para o fato de que Sócrates emprega a palavra grega therapeúein para referir-se ao verbo “ocupar-se”, sendo esse um verbo de múltiplos valores: therapeúein refere-se aos cuidados médicos, mas também ao serviço que um servidor presta ao seu mestre; ou então, ao serviço do culto, culto que se presta a uma divindade ou a um poder divino (idem, p. 12).

Assim, o cuidado de si é para Foucault uma prática espiritual, e, mais ainda, a única forma do sujeito vir a conhecer, a acessar a verdade. Isso aparece mais adiante na mesma aula, no momento em que reconhece a profunda correlação entre filosofia, espiritualidade e acesso à verdade.

Chamemos de “filosofia”, se quisermos, esta forma de pensamento que se interroga, não certamente sobre o que é verdadeiro e sobre o que é falso, mas sobre o que faz com que haja e possa haver verdadeiro e falso, sobre o que nos torna possível ou não separar o verdadeiro do falso. Chamemos “filosofia” a forma de pensamento que se interroga sobre o que permite ao sujeito ter acesso à verdade, forma de pensamento que tenta determinar as condições e os limites do acesso do sujeito à verdade. Pois bem, se a isto chamarmos “filosofia”, creio que poderíamos chamar de “espiritualidade” o conjunto de buscas, práticas e experiências tais como as purificações, as asceses, as renúncias, as conversões do olhar, as modificações de existência, etc., que constituem, não para o conhecimento, mas para o sujeito, para o ser mesmo do sujeito, o preço a pagar para ter acesso à verdade […] A espiritualidade postula que a verdade jamais é dada de pleno direito ao sujeito. A espiritualidade postula que o sujeito enquanto tal não tem direito, não possui capacidade de ter acesso à verdade. Postula que a verdade jamais é dada ao sujeito por um simples ato de conhecimento, ato que seria fundamentado e legitimado por ser ele o sujeito e por ter tal e qual estrutura de sujeito. Postula a necessidade de que o sujeito se modifique, se transforme, se desloque, torne-se, em certa medida e até certo ponto, outro que não ele mesmo, para ter direito ao acesso à verdade. A verdade só é dada ao sujeito a um preço que põe em jogo o ser mesmo do sujeito. Pois, tal como ele é, não é capaz de verdade (pp. 19-20, grifo nosso).

O cuidado de si é, tal como Foucault nos apresenta, uma prática de transformação do sujeito; e é nesse sentido que o conhecimento – conhece-te a ti mesmo – está subordinado ao cuidado de si, uma vez que aquele é consequência da transformação que o cuidado é capaz de gerar.

Um outro filósofo contemporâneo, também francês, que reconhece o profundo parentesco entre filosofia e espiritualidade é Pierre Hadot. Para esse autor, a filosofia em sua origem sempre foi uma prática espiritual; ele afirmará que todo discurso filosófico que podemos nela (filosofia) encontrar sempre esteve subordinado a um “modo de vida” (manière de vivre), ou seja, todo discurso filosófico antigo sempre foi desdobramento, consequência de um sistema de práticas, e não o elemento fundamental da filosofia, uma vez que, prioritariamente, “a filosofia deve se definir como um “exercício espiritual” (Hadot, 2014, p. 333), ou então, “como esforço de modificação e transformação de si” (idem, p. 334).

Exercícios espirituais e a superação da parcialidade individual

Hadot (2005) lamenta o fato de que a maior parte das pessoas tenha a impressão de que todos os filósofos que deixaram seu testemunho oral ou por escrito esforçaram-se sucessivamente para inventar uma nova construção sistemática e abstrata, destinada a explicar, de uma maneira ou de outra, o universo; ou, “pelo menos, caso se trate de filósofos contemporâneos, que eles procuraram elaborar uma nova discussão sobre a linguagem” (p. 17). Essa compreensão reduzida ou equivocada acaba por conferir maior acento à dimensão do discurso presente na contribuição dos filósofos, em detrimento da prática cotidiana que muitos deles apontaram, as quais fazem do discurso apenas um desdobramento. Segundo Hadot,

[…] ao menos desde Sócrates, a opção por um modo de vida não se situa no fim do processo da atividade filosófica, como uma espécie de apêndice acessório, mas, bem ao contrário, na origem, em uma complexa interação entre a reação crítica a outras atitudes existenciais, a visão global de certa maneira de viver e de ver o mundo, e a própria decisão voluntária; e essa opção determina até certo ponto a doutrina e o modo de ensino dessa doutrina. O discurso filosófico tem sua origem, portanto, em uma escolha de vida e em uma opção existencial, e não o contrário (idem, pp. 17-18).

De acordo com a visão do filósofo contemporâneo, todas as Escolas de filosofia antiga propõem, cada uma à sua maneira, uma crítica ao estado habitual dos homens, estado de sofrimento, de desordem e de inconsciência, e um método para curar os homens desse estado. Ele relembra uma frase de Epiteto, que dizia: ‘A Escola do filósofo é uma clínica’.

A terapêutica praticada pela filosofia antiga acontecia, primeiramente, a partir da conversão produzida pelo discurso do mestre de determinada escola, discurso esse que produzia “o efeito de um encantamento, de uma mordida ou de um choque violento que desconcerta o ouvinte”; mas, para curar, continua Hadot (2005), “não basta ficar comovido, é preciso querer realmente transformar sua vida (p. 335).

Para transformar, é necessário praticar, exercitar-se, daí o termo utilizado por tantas escolas antigas, askesis, ou, para nós, “ascese” – prática de transformação de si, tais como: “meditação, diálogo consigo mesmo, exame de consciência, exercícios da imaginação, como o olhar lançado do alto sobre o cosmos ou sobre a terra; seja na ordem da ação e do comportamento cotidiano, como o domínio de si, a indiferença às coisas indiferentes, a realização dos deveres da vida social no estoicismo, a disciplina dos desejos no epicurismo” (idem, p. 335).

A transformação almejada pela prática ocorre no sentido de promover para o filósofo – aquele que anseia tocar a Sabedoria, habitar junto à Sophia –, uma mudança de ponto de vista, de atitude, de convicção; ou ainda, de diálogo consigo mesmo (Hadot, 2014, p. 41). Ensina-nos Hadot:

[…] apreender-se-á melhor esse exercício espiritual compreendendo-o como um esforço para se libertar do ponto de vista parcial e passional, ligado ao corpo e aos sentidos, e para se elevar ao ponto de vista universal e normativo do pensamento, para se submeter às exigências do Logos e à norma do Bem. Exercitar-se para a morte é exercitar-se para a morte de sua individualidade, de suas paixões, para ver as coisas na perspectiva da universalidade e da objetividade (2014, p. 45).

O filósofo, a partir da perspectiva aqui apresentada, cuida de si mesmo na medida em que desafia sua própria opinião, coloca-a em xeque, relativiza-a ao elevar-se em direção ao Todo, ao Uno, ao Intelecto, como preferia Porfírio, para quem a vida filosófica consistia na “purificação da alma pelo desapego ao corpo, depois conhecimento e superação do mundo sensível e, enfim, conversão em direção ao Intelecto [Logos]” (Hadot, 2014, p. 53).

Para a filosofia antiga, apesar das divergências de caminhos entre as Escolas, é de comum acordo que a grandeza de alma eventualmente conquistada por um filósofo é fruto da universalidade do pensamento. Assim, todo o trabalho especulativo e contemplativo do filósofo torna-se exercício espiritual “na medida em que, elevando o pensamento até a perspectiva do Todo, ele o liberta das ilusões da individualidade” (idem, p. 49).

Hadot (2014), a título de exemplo, traz à luz uma fala de Epicuro, a respeito da mudança que a contemplação do mundo físico e a imaginação do infinito provocavam em sua maneira de apreender o mundo:

As muralhas do mundo se abrem e tombam, vejo no vazio do universo as coisas se produzirem… Então, perante esse espetáculo, um tipo de prazer divino toma conta de mim e um frêmito, porque a natureza, descobrindo-se com tanta evidência, é assim em todas as suas partes despida de seus véus 

A partir desse relato, é possível concluir que os exercícios espirituais praticados pelos filósofos antigos estavam destinados a ajudá-los a purificarem seus olhares, suas consciências, suas almas, a fim de que pudessem “ver” (theorein[4]) o Real presente na realidade.

Ainda, aqui, com Hadot, mas por meio de uma outra linguagem, temos uma compreensão da filosofia como cuidado de si a fim de que a verdade possa se manifestar no cotidiano humano.

Após essas tantas voltas, é possível reconhecer nas palavras de Safra, concedidas em sua entrevista, e postas em diálogo com a semântica até então exposta, uma apresentação pessoal da concepção de “cuidado de si” e de “exercícios espirituais” a partir de sua relação de intimidade com o silêncio. No entanto, o contexto para o qual ele endereça sua contribuição não é a filosofia, mas a situação clínica. Será para esta dimensão que nos voltaremos agora.


[4] Segundo Heidegger (2002), Theá é a deusa. Foi como deusa que a aletheia apareceu ao pensador originário Parmênides; a palavra grega ora significa o respeito que temos, diz a honra e a consideração que damos. Se pensarmos, pois, a palavra theoria a partir destas últimas significações, a theoria se torna a consideração respeitosa da revelação do vigente em sua vigência. Em sentido antigo, isto é, originário, mas de forma alguma antiquado, a teoria é a visão protetora da verdade ” (p. 45, grifo nosso). Ainda de acordo com Heidegger, “Para um grego, o bíos theoretikós, a vida de visão, sobretudo em sua forma mais refinada, o pensamento, é a atividade mais elevada. A teoria/theoría, já em si mesma e não por uma utilidade posterior, constitui a forma mais perfeita e completa do modo de ser e realizar-se do homem” (idem, ibidem).

A inclusão da prática do silêncio no dispositivo clínico

No início do texto viemos a saber que o silêncio ocupa na vida de Safra uma função essencial de revelação (de autenticidade e de verdade); mas a intimidade com essa dimensão também exerce em seu cotidiano a tarefa de direcionamento. Esse novo atributo do silêncio aparece no trecho a seguir, ainda dentro da entrevista inicialmente mencionada:

Eu não consigo chegar à classe e dar aula. Quando chego, eu sento na mesa e fico um período em silêncio, uns cinco ou dez minutos antes de começar a aula. Aí vou ver em mim como vou abordar o assunto que eu acho que precisa ser tratado naquela aula. Mesmo enquanto ela acontece, eu preciso de momentos de sair um pouco da situação de aula, e poder recuperar aquilo que vai se colocar como continuidade do que está sendo apresentado. Eu acho que é mais simples para a classe estar em silêncio, se aquilo que vai ser dito brota de um corpo que se aquieta (Perdigão, 2005, p. 121, grifo nosso).

É possível, portanto, notar a relação entre silêncio e verdade/direcionamento como parte do método pedagógico de Safra; mas ele também assinala que esse é um método clínico por excelência, ou ainda, assinala o estatuto ético que o silêncio ocupa em seu ofício clínico:

Eu dou aula em graduação, dou supervisão para pessoas que estão iniciando seu trabalho em clínica, e o terapeuta, de forma geral, acredita que vai ajudar o seu paciente se ele fizer alguma coisa por ele: “Eu vou ter que falar algo” ou “Eu vou ter que interpretar”. E se não fala algo ou não interpreta, acha que não está sendo terapeuta. Essas pessoas, que foram constituídas no ruído e que não conhecem o silêncio, buscam um processo que, se for uma terapia ruidosa, em que o terapeuta vai tagarelar interpretações, na verdade, estarão sendo jogadas num outro tipo de sofrimento, e penso que isso é um desastre. Estou vendo, hoje em dia, mais e mais pessoas que precisam encontrar “não-fala”, “não-interpretação” (p. 120, grifo nosso).

Compreendo que essa “não-fala” ou “não-interpretação” a que Gilberto Safra se refere não seja o silêncio austero praticado nas primeiras décadas do exercício psicanalítico, que facilmente acaba por criar uma atmosfera de cobrança voltada ao paciente e de impessoalidade (frieza) na relação; que oprime, ao invés de favorecer a comunicação. A esse tipo de abuso feito por meio do silêncio, apregoado pelo projeto de “abstinência afetiva”[5], e que encontrou expressão e fundamentação ética e técnica na figura do analista “espelho”[6], Ferenczi, em seu artigo “Elasticidade da técnica psicanalítica”, já fez severas críticas:

Adquiri a convicção de que se trata, antes de tudo, de uma questão de tato psicológico, de saber quando e como se comunica alguma coisa ao analisando, quando se pode declarar que o material fornecido é suficiente para extrair dele certas conclusões; em que forma a comunicação deve ser, em cada caso, apresentada; como se pode reagir a uma reação inesperada ou desconcertante do paciente; quando se deve calar e aguardar outras associações; e em que momento o silêncio é uma tortura inútil para o paciente (Ferenczi, 1928/1992, p. 31, grifo nosso)

Parece-me que a “não-fala” ou a “não-interpretação” a que Safra se refere esteja relacionada à capacidade de espera do analista, a fim de que não exija prematuramente de seu paciente algum conteúdo significativo ou passível de ser analisado.

Donald Winnicott relata, certa vez, que para que o tratamento de uma paciente aparentemente neurótica – mas que guardava em si uma estrutura defensiva de qualidade psicótica – fosse efetivo, seria necessário haver uma regressão em busca do “verdadeiro eu”. Ele afirma, na ocasião em que redige o artigo “Aspectos clínicos e metapsicológicos da regressão no contexto analítico”, que estava decidido, desde o momento em que percebera a real necessidade da paciente, a dar total liberdade para que o movimento regressivo acontecesse; no entanto, em um determinado momento desse tratamento, sente ter atrapalhado a paciente e quase interrompido o tão delicado processo de regressão:

Essa única exceção consistiu numa interpretação dada por mim a partir do material que havia surgido, ligado ao erotismo e sadismo orais na transferência. A interpretação era correta, mas chegou seis anos cedo demais, porque eu ainda não acreditava inteiramente na regressão. Para a minha própria segurança, eu precisava testar o efeito de pelo menos uma interpretação comum. Quando chegou o momento adequado para essa interpretação, ela não era mais necessária (Winnicott, 1955d, p. 376).

Winnicott acredita que sua falha tenha acontecido devido à falta de crença plena no processo de regressão, mas podemos inferir que isso tenha se dado também por conta de uma falta de confiança e de intimidade ou de maturidade com a dimensão do silêncio.


[5] “O tratamento analítico deve ser efetuado, na medida do possível, sob privação – num estado de abstinência” (Freud, 1918/2006, p.176). Uma vez que a terapêutica psicanalítica fundava -se na produção da palavra, a abstinência afetiva seria uma ferramenta vital para que o desejo não satisfeito pudesse ser transformado em fantasia e finalmente comunicado e simbolizado pelo psiquismo do paciente. Por meio da atuação na transferência, as fantasias inconscientes poderiam ser interpretadas, permitindo, assim, a recordação por parte do paciente daquilo que havia sido reprimido para, então, alcançar sua elaboração (Freud, 1914/1990). Tal postura também evitaria que o paciente usasse a dimensão transferencial de maneira dispersiva, já que Freud constatara em sua experiência clínica que o paciente, “que deveria não desejar outra coisa senão encontrar uma saída para seus penosos conflitos, desenvolve especial interesse pela pessoa do médico” (Freud, 1916/1990, p. 103). Devolvendo a atenção do paciente para suas próprias formações inconscientes, ou seja, para a análise de suas fantasias, para o desejo, o analista estaria protegendo aquele que acompanha, de um certo “desperdício transferencial” e da possível paralisia do processo de amadurecimento psíquico; em última instância, o analista estaria protegendo a aparição da alteridade mais cara ao processo terapêutico: o inconsciente.

[6] “Tal como um espelho, o analista não deve mostrar ao paciente nada, exceto o que lhe é mostrado” (Freud, 1912/1990, p.131).


Podemos pensar que toda pressa é resultante de um descompasso do indivíduo com o silêncio que habita sua interioridade.

A frase da citação “para a minha própria segurança, eu precisava testar o efeito de pelo menos uma interpretação comum”, revela a grande autocrítica de Winnicott, pois nela está contida a ideia de que muitas vezes, nós psicoterapeutas, falamos algo para o paciente a partir de uma necessidade pessoal e, portanto, que não deriva primordialmente da própria necessidade do paciente. Assim, tendo em vista o referencial teórico e semântico aqui utilizado, é possível afirmar que Winnicott precipitou-se justamente por não ter consultado seu silêncio a fim de averiguar se o momento em que concebera a interpretação era de fato apropriado para essa ser verbalizada, considerando o tempo maturacional de sua paciente.

Algo que me chamou bastante atenção na maneira como Safra apresenta sua relação com o silêncio é o fato de parecer consultá-lo costumeiramente; o silêncio aparece em sua fala como um mestre, um guia sobre o que deve vir a se manifestar ou não no presente momento. O silêncio é, assim, o real clínico, o terceiro da relação analítica, o Outro que prepara terreno para a eclosão da verdade.

Parece-me, portanto, que o estudo sobre a prática do silêncio, bem como a própria prática do silêncio por parte de um clínico sejam imperativos para que seu ofício seja realizado com excelência. Tal compreensão nos conduz a um questionamento acerca do próprio tipo de cuidado que um clínico deve ter consigo mesmo, ou ainda, nos faz questionar o famoso tripé psicanalítico – análise pessoal, supervisão clínica e estudo teórico. Será que essas três frentes até então consagradas de cuidado de si bastam para realizarmos um trabalho clínico pautado na real necessidade de nossos pacientes?

Espero que possamos nos posicionar no silêncio e, diante dele, aguardarmos humildemente até a chegada do grande rei, tal como Rumi, em “A hora da união”, nos aponta:

Abençoado todo aquele em cujo coração ressoa o grito celeste que chama “Vem”.

Limpa bem teus ouvidos e recebe nítida essa voz. 

O som do céu chega como um sussurro.  

Não manches teus olhos com a face dos homens.  

Vê que chega o imperador da vida eterna.  

Se te turvaram os olhos lava-os com lágrimas, pois nelas encontrarás a cura de teus males.

Acaba de chegar do Egito uma caravana de Açúcar.

E já se ouvem os sinos e os passos cansados.

Silêncio!

Eis que chega o rei que vai completar o poema


Referências bibliográficas

Evdokimov, P.  A mulher e a salvação do mundo, 1986

Ferenczi, S. Elasticidade da técnica psicanalítica, 1928/1992

Foucault, M. A hermenêutica do sujeito, 2014

Freud, S. A dinâmica da transferência, 1912/1990

Freud, S. Recordar, repetir e elaborar, 1914/1990

Freud, S. Conferências introdutórias sobre psicanálise, 1916/1990

Hadot, P. O que é a filosofia antiga, 2005

Hadot, P. Exercícios espirituais e filosofia antiga, 2014

Heidegger, M. Ciência e pensamento do sentido, 2002

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