Do soma à psique, da psique ao espírito: passagens fundamentais do amadurecimento humano

Por: João Pedro Javera

 

Devido à herança platônica presente no pensamento ocidental, é de hábito se compreender os termos “alma” e “espírito” como entidades que precedem o corpo. Em Timeus, Platão defenderá a tese de que as almas humanas são provenientes do plano das Ideias (εἶδος, eidos, ou ἰδέα, ideia) ou, ainda, das Substâncias (οὐσία, ousia) – uma dimensão da existência na qual as coisas portariam maior realidade do que aquela pertencente às aparências. De acordo com essa visão, quando o homem morre, a alma retorna à sua origem, esperando por uma nova possibilidade de se vincular à matéria (uma nova encarnação). A alma, aqui, independe do corpo para se constituir.

Essa maneira de compreender o funcionamento do universo deu nascimento àquilo que a Filosofia denomina de metafísica, ou, “ciência primeira” – pois originária, e para aquém das leis empíricas. “Se há algo de eterno, imóvel e separado”, escreveu Aristóteles, “o conhecimento disso deve pertencer a uma ciência teorética, porém certamente não à física (que se ocupa das coisas em movimento), nem à matemática, mas sim a uma ciência que está antes de ambas […] Somente a ciência primeira tem por objeto as coisas separadas e imóveis” (Abbagnano, 2007, p. 661). A busca por aquilo que seria eterno e, portanto, imaterial, criou uma tendência no Homem ocidental a supervalorizar o Ser e a depreciar os entes; e, mais ainda, a separar a unicidade da vida, fragmentando-a em duas dimensões pouco relacionáveis.

A proposta desse texto é apresentar dois caminhos teóricos por meio dos quais seja possível compreender os termos “alma” e “espírito” a partir de um outro prisma, e, dessa maneira, incluir o corpo na sua constituição – ou melhor, tomá-lo como veículo imprescindível da mesma; para tanto, me utilizarei da contribuição de dois psicanalistas: Donald Winnicott e Gilberto Safra.

Winnicott (1896-1971) foi um pediatra, antes de ter adentrado à prática da psicanálise. Tal formação o sensibilizou para as questões da tenra infância de maneira muito significativa. Pelo fato de ter estabelecido muita intimidade com o processo de amadurecimento de bebês e crianças, esse clínico organizou seu pensamento de forma a considerar as diversas passagens do desenvolvimento emocional humano. Ele inicia sua descrição sobre a condição humana a partir da compreensão de que o bebê nasce em uma situação de total dependência a seu ambiente de cuidado; e uma de suas frases mais contundentes a esse respeito teria sido: “não existe algo que possamos chamar ‘um bebê’ – o que significa que se você se propõe a descrever um bebê, descobrirá que está descrevendo um bebê e alguém. Um bebê não pode existir sozinho, mas é essencialmente parte de um relacionamento” (Winnicott, 1947b, p. 88, itálico nosso).

Para esse autor, nada está garantido ao bebê humano em termos de amadurecimento; cada recurso disponível para permanecer existindo e evoluindo é compreendido como fruto de uma aquisição e, mais ainda, fruto da oferta de cuidado externo – disponibilidade de um outro amoroso. A psique (ou alma), em sua visão, não é uma exceção a essa compreensão; e Winnicott considera até mesmo o corpo, enquanto estrutura psicossomática, também uma aquisição, pois a existência do corpo já diria respeito ao funcionamento de um soma que traz em si a presença do outro, ou seja, de algo que já guarda as marcas da linguagem. Safra (2005) esclarece a posição winnicottiana:

 

Para Winnicott o psíquico não é concebido como pré-existente, tal como é para outras teorias psicanalíticas. Este autor vai definir o psíquico como a elaboração imaginativa do corpo. A criança nasce com o soma, o qual, por meio da elaboração imaginativa, se constitui em um corpo; o soma se torna corpo e esse processo, proporcionado principalmente pelo manuseio [handling], permite que a corporeidade da criança possa ser figurada e significada pelo contato com o corpo da mãe. Então, o corpo tocado, o corpo tratado, o corpo cuidado, é banhado em inúmeras formas estéticas significativas que permitem que este corpo se organize como linguagem. É esse corpo, transfigurado pela presença materna, que carrega em si uma elaboração das funções a nível de imagens e significações que possibilitará que o psiquismo possa se originar e se estabelecer na corporeidade (p. 17).

 

É interessante notar que o corpo de um bebê, segundo Winnicott, se constitui somente a partir de um outro corpo disponível afetivamente, e que esse corpo vai sendo “animado” pela critividade, ou ainda, pela função elaborativa (imaginative elaboration) das próprias funções corporais (Winnicott, 1965n). Dessa forma, vê-se que aquilo que denominamos “alma” é compreendido pelo autor como resultante de uma construção realizada tanto por meio do encontro interpessoal quanto por meio dos processos internos de elaboração de um indivíduo. Winnicott, ainda, revela estar totalmente na contramão do platonismo, quando afirma a participação do cérebro na formação da alma; ele afirma:

 

A psique se forma a partir do material fornecido pela elaboração imaginativa das funções corporais (que, por sua vez, depende da saúde e capacidade de um órgão especifico —o cérebro). Pode-se dizer com segurança que a fantasia mais próxima do funcionamento corporal depende da função daquela parte do cérebro que, em termos evolutivos, é a menos moderna, enquanto a consciência-de-si depende de [o] funcionamento daquilo que é mais moderno na evolução do animal humano. A psique, portanto, está fundamentalmente unida ao corpo através de sua relação tanto com os tecidos e órgãos quanto com o cérebro, bem como através do entrelaçamento que se estabelece entre ela e o corpo graças a novos relacionamentos produzidos pela fantasia e pela mente do indivíduo, consciente ou inconscientemente. A meu ver, a alma é uma propriedade da psique assim definida, dependendo também ela do funcionamento do cérebro e podendo estar sadia ou doente. Reconheço que esta é uma perspectiva pessoal, que se choca com os ensinamentos de quase todos os sistemas religiosos. Assim, é com toda a modéstia possível que mantenho o meu ponto de vista (Winnicott, 1988, p. 70).

 

Psique e alma talvez sejam termos que digam respeito a um centro de funcionamento da interioridade do ser humano; ou ainda, à sede dos processos internos, da qual depende o enriquecimento pessoal de alguém.

Quando nos aproximamos da teoria do amadurecimento de Winnicott, é possível perceber que ela se organiza de forma a compreender o ser humano como uma amostra do tempo que parte de uma situação de extrema dependência do Outro (mãe, família, sociedade, Cultura, etc.) para existir, mas que, eventualmente, se direciona rumo à maior independência dos cuidados adaptativos do ambiente a fim de se desenvolver. Ser mais independente[1] significa, aqui, ter capacidade para se enriquecer com as experiências oferecidas pelos encontros e desencontros com a realidade compartilhada. O enriquecimento da interioridade teria como um dos principais resultados a ampliação da alma do ser humano, o que o permitiria acolher sua própria humanidade, ou então, sua condição existencial. Winnicott (1996a) nos oferece um exemplo a esse respeito:

 

Se pensamos em Shakespeare, e em ser capaz de entrar no mundo interno de alguém, vemos que o mundo interno de Shakespeare era tão rico como o mundo em que vivemos. Tudo o que vinha dele era alguma coisa que estava baseada numa aguda observação dos seres humanos no mundo real. Tudo o que ele sentia e fazia tinha entrado dentro dele, e quando ele trazia isso para fora nós podíamos reconhecer e examinar essas coisas (p. 53).

 

Maior independência referente aos cuidados adaptativos permitiria ao ser humano adentrar o vasto universo da Cultura – àquilo “que é comum à humanidade, que pode receber a contribuição de grupos e de indivíduos, e a que todos podemos recorrer desde que tenhamos um lugar onde colocar o que encontrarmos” (1971a/2019, p. 160). O programa terapêutico de Winnicott tem como seu ponto de desfecho justamente ofertar a uma pessoa a possibilidade de vir a desfrutar desse fundo humano comum; ou seja, brincar: doar e receber, entrar e sair da “terceira área da experiência humana”, do “espaço potencial”, da “zona intermediária” – espaço no qual se é um com o outro, ainda que, paradoxalmente, se permaneça em total reclusão interna. Assim, Winnicott nos ensina que a alma se constitui e se enriquece no “entre” – dimensão da vida que revela ser o habitat por excelência da alma.

Ainda que esse autor tenha nos deixado muito a pensar sobre a alma humana, pouco nos legou a respeito do “espírito”. É Safra quem encontra em Winnicott alguma pista para se desenvolver algo a respeito desse último termo – tão polêmico para o campo da psicanálise, pelo fato de estar impregnado de misticismo e causar tantas confusões conceituais. O psicanalista brasileiro se baseia em uma afirmação de Winnicott, feita em uma palestra realizada na “Associação de assistentes para crianças desajustadas” (em 1970), a fim de fundamentar sua compreensão sobre os caminhos pelos quais o espírito humano poderia se formar; nela lê-se: “Há muito crescimento que é crescimento para baixo. Se eu tiver uma vida razoavelmente longa, espero encolher e tornar-me suficientemente pequeno para passar pelo estreito buraco chamado de portas da morte” (Winnicott, 1984g/1987, p. 225).

Safra compreende que uma etapa do amadurecimento humano, posterior àquela de formação da alma e de seu enriquecimento, seria justamente o de “des-criação” da alma, ou ainda, de sua transformação em espírito. Esse autor se baseia em uma frase de Bakhtin (1979), que afirma: “a alma é o espírito que não se realizou” (Bahktin apud Safra, 2006, p. 165), a fim de vir a assinalar que a alma teria uma derradeira vocação: tornar-se um outro!

Para que isso venha a acontecer, é necessário que a alma – portadora de uma natureza desejante, erótica e devocional – encontre seu objeto de amor e se direcione inteiramente para ele; ou seja, a fim de que se possa “crescer para baixo” e apequenar-se – acolher a própria morte – é necessário que um Outro seja encontrado pela alma, pois, somente dentro de um encontro significativo com alguma faceta do Real (experiência que é vivida como sagrada por um indivíduo), pode ela concentrar, ou ainda, reunir seu potencial devocional e apontá-lo em direção a algo que lhe faz sentido e lhe transforma.

É a partir dessa experiência que, segundo Safra (2006), se inicia o processo de formação de espiritualidade, que, para o autor, é compreendido como a possibilidade de uma pessoa pôr a si mesma e a sua existência em consonância com a sua concepção do absoluto ou do divino. No momento em que esse movimento se estabelece, tal pessoa deixaria de viver apenas para o momento do agora, ou seja, como simples reação ao imediato, e passaria a se posicionar conscientemente diante de um sentido que a transcende: “do ponto de vista da experiência”, diz ele, “temos um sair de si mesmo” (p. 116).

A apresentação feita por Safra a respeito desse tema permite que se compare tal processo de transformação àquele descrito pela ciência alquímica: no lugar da imagem em que um metal pesado se torna ouro, tem-se aquela na qual a alma se faz espírito:

 

[a alma] é aquilo com que eu mesmo nada tenho a fazer. Em que sou passivo-receptivo. A alma, eu a encontro como doação. Nasce-se o que se é, em meio as questões transgeracionais que nos acalantam. A alma acolhe-se […] No entanto, há um momento em que se pode tomar o que nos caracteriza, os traços pessoais, a maneira como a sensibilidade acontece em nós, o modo como se é singularizado pelas questões que encontramos em nosso berço, e nos direcionar para o sonho do futuro. Surge então o vocacionar-se para muito além de uma escolha profissional. No momento em que a pessoa se destina, em que se posiciona frente a si mesma, move-se na dimensão espiritual. O gesto é o movimento enraizado em nossa instabilidade, em nossa precariedade e em nossa transcendência originária, sustentado pelo Outro. Em outras palavras: espiritualidade é alma em travessia, em trânsito, em direção a” (Safra, 2006, pp. 166-167).

 

Há uma relação íntima entre a formação da espiritualidade e a morte (simbólica) da própria alma, pois, quando tal processo se inicia, o gesto cotidiano de alguém passa a estar tão carregado de sentido pessoal, ou seja, tão banhado de saber e de convicção experienciais, que é percebido como sendo mais valioso e mais importante de ser sustentado do que a própria sobrevivência psicossomática.

Safra dá um novo estatuto para o termo “gesto”, lançado por Winnicott, porque mais radical do que aquele conferido pelo último. O gesto criativo, ou ainda, o unexpected creative gesture (Winnicott, 1996a, p. 278) é a revelação do que há de mais autêntico na vida de uma pessoa, pois oriundo do “verdadeiro self”. No entanto, diz Safra, quando uma pessoa consegue caminhar o suficiente em seu processo de amadurecimento para colocar em ação sua utopia pessoal, ou seja, posicionar-se diante das situações cotidianas de forma a encarnar o sentido existencial que lhe é mais caro, o gesto não é apenas um ícone da alma, mas, realmente, rosto do espírito.

O autor nos ajuda a tornar essa concepção mais compreensível, quando cita a maneira pela qual a filósofa francesa, Simone Weil, acolheu o tema da solidariedade em sua vida[2]. Certa vez, sentada à mesa de jantar com sua família, ainda quando pequena, Simone foi surpreendida pela notícia de que haviam pessoas no mundo que sofriam pela fome. Tal descoberta a fez se levantar da mesa e recusar a comida disponível em seu confortável e opulento lar; mais ainda, tal descoberta a teria impulsionado a estudar filosofia, bem como a ocupar atividades profissionais marcadas pela humilhação social e pela demanda de muito esforço físico. Simone levou a solidariedade às últimas consequências, tendo inclusive morrido de inanição, com apenas 34 anos de idade.

A solidariedade teria feito Simone Weil “sair de si mesma”, ou seja, ter colocado suas necessidades mais imediatas (tal como a fome, o sono, etc.) em segundo plano, a fim de devotar-se a um sentido, ou, a um princípio existencial que lhe parecia ser rosto do divino. Dessa forma, a solidariedade motivou a filósofa a se espiritualizar, a fazer de sua alma um outro em si mesma!

Aparentemente, Simone realizou a vocação da alma em fazer-se espírito, e assim, amou…: aproximou-se daquela realidade que São Dionísio, o Areopagita, nos aponta, quando declara: “o amor acontece como experiência de êxtase [saída de si], no sentido de que o amante não mais pertence a si, mas àquilo que ama” (Santos, B. S., 2004, pp. 105-106).

 

Referências

Abbagnano, N. (2007).  Dicionário de filosofia. Martis Fontes.

Dionísi

Safra, G. (1999 e 2001). Simone Weil e as necessidades da alma, curso em formato de mp3. Disponível em: http://www.livrariaresposta.com.br/v2/busca.php?buscaTipo=1&buscaTxt=weil&buscaOk=OK

Safra, G. (2005). Revisitando Piggle. Sobornost.

Safra, G. (2006). A hermenêutica na situação clínica. Sobornost.

Safra, G. (2010). Investigação psicanalítica de experiências de self. Encontrado em: http://www.livrariaresposta.com.br/v2/busca.php?buscaTipo=1&buscaTxt=experi%EAncias+de+self&buscaOk=OK

Santos, B. S. (2004). Dos nomes divinos. Attar.

Winnicott, D. W. (1947b/1987). Further Thoughts on Babies as Persons. The child, the family, and the outside world. Persus Publishing.

Winnicott, D. W. (1965n/2000) “A integração do ego no desenvolvimento da criança”. O ambiente e os processos de maturação. Artmed.

Winnicott, D. W. (1966a/2005). Pensando sobre crianças. Artmed.

Winnicott, D. W. (1971a/2019). O brincar e a realidade. Ubu.

Winnicott, 1984g/1987). [de]Privanção e delinquência. Martins Fontes.

Winnicott, D. W. (1988). Natureza Humana. Imago.

[1] Segundo Winnicott (), o ser humano jamais se torna plenamento independente do outro.

[2] Ver Safra (1999, 2001): Simone Weil e as necessidades da alma, curso em formato de mp3. Disponível em: http://www.livrariaresposta.com.br/v2/busca.php?buscaTipo=1&buscaTxt=weil&buscaOk=OK

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