A capacidade humana para transitar no campo simbólico e alcançar novos posicionamentos frente à vida

 

A possibilidade de acessar o universo simbólico é um grande passo maturacional na vida de um indivíduo, pois, mesmo diante da ausência de algo que lhe é caro – um objeto, uma pessoa, uma situação –, consegue, ainda assim, preservar com o mesmo uma relação, uma ligação íntima. O uso de símbolos libera o ser humano da concretude, da presença literal e direta de um outro específico, permitindo-o encontrar representantes do assim chamado “objeto originário”.

A palavra grega sym-ballei (σῠν, “com”, “junto” e βάλλω, “lançar”, colocar”) tem o sentido etimológico de “unificar”, “reunir”, “juntar” (Yannaras, 2007, p. 163, 167); ou seja, o símbolo traz para perto aquilo que estava separado: presentifica, re-presenta, reapresenta para nós um objeto que era tido como perdido.

De acordo com a teoria do psicanalista Donald Winnicott (1953c), a capacidade do ser humano de se utilizar do universo simbólico tem origem no momento em que o bebê, após ter tido a oportunidade de viver uma relação fusional com sua mãe no início da vida (na qual suas necessidades onipotentes primitivas foram devidamente atendidas), consegue perceber-se como um ente separado do outro, alguém com contornos próprios, e que, portanto, passa a habitar duas dimensões distintas: uma interna e outra externa; ou seja, concebe a existência de um “dentro” e um “fora” de si mesmo.

Essa experiência de se ver separado de um outro que fora, até então, sentido como si mesmo (estado de fusão) seria insuportável, não fosse possível ao bebê estabelecer e transitar por uma “terceira área da experiência”, um espaço potencial (cheio de possibilidades) localizado justamente entre seu corpo e o de sua mãe. Esse espaço potencial (ou, campo transicional) que pode se instaurar no início da vida humana (caso tudo corra bem em termos do desenvolvimento emocional e relacional do bebê) é onde serão vividas as futuras experiências imaginativas, culturais, artísticas, científicas e religiosas. É um espaço de ilusão, em que encontros são possíveis. É também um espaço no qual a “elaboração” acontece, ou seja, no qual o trânsito das questões humanas pode se dar e estas podem, eventualmente, alcançar resoluções.

Winnicott se refere a esse fenômeno elaborativo em seu texto “Adendo à localização da experiência cultural”, quando menciona que havia criado em sua interioridade um “clube” que visitava em seus sonhos, e nele encontrava diversas pessoas com as quais conversava; por meio do diálogo, alcançava insights e direcionamentos para seus problemas atuais. Ele compartilha o seguinte a esse respeito: “no curso de anos de sonhar, este lugar tornou-se uma comunidade à qual ganhei acesso. As pessoas nela cresceram, desenvolveram seus relacionamentos, mudaram, e, de modo geral, esse clube me concedeu um tremendo senso de estabilidade” (1989r, p. 158).

A experiência clínica nos concede acesso a muitas situações como essa descrita acima, em que pessoas adentram o universo simbólico e nele deslizam, ou seja, nele projetam suas questões e dele recebem de volta algum aprendizado que as permite assumir um novo posicionamento diante de pessoas, questões, problemas, e, até mesmo, diante da própria existência. Também é possível encontrar exemplos desse fenômeno em diversos filmes; menciono aqui três, que me parecem bastante didáticos para a compreensão do tema: Lars e a garota real (2007), Cerejeiras em flor (2008), e Amanda (2018).

A respeito do último, único que irei me ater no momento, acompanhamos a história de uma menina de dez anos de idade que vivia com sua mãe, e que era muito próxima de seu tio materno, quem lhe dedicava muita afeição. Seu pai não era uma pessoa presente em sua vida. Por volta da metade do filme, a mãe de Amanda falece, e seu tio, de apenas vinte e poucos anos, torna-se sua figura adulta de referência. Ainda que recebendo sustentação de seu querido tio, Amanda aparenta não apenas estar perdendo vitalidade, como a esperança de que possa novamente vir a se conectar intensamente com a vida (compreendemos que a perda da mãe era também a perda de sua própria capacidade para continuar vivendo de forma esperançosa).

Em certo momento do filme, o tio de Amanda proporciona-lhe uma situação que a auxilia a mover-se internamente em relação a suas questões psicológicas e existenciais. Eles vão a uma partida de tênis (esporte favorito do tio) e Amanda se conecta bastante à dinâmica do jogo. Decorrido certo tempo da partida, um dos jogadores começa a perder muitos pontos sequencialmente, o que faz Amanda ficar aflita. Conforme o jogador afunda-se em sua má fase, Amanda se reconhece nele, bem como na impossibilidade de ambos reverterem o cenário desolador em que se encontram. Ela passa a chorar copiosamente e seu tio não compreende o porquê de tanta aflição de sua parte. Ele lhe assegura que o jogo ainda está em andamento e que o jogador que está perdendo pode, a qualquer momento, virar a partida; no entanto, ela está inconsolável e totalmente identificada com o fracasso do jogador – e, ainda mais, com o fato de ele estar sendo massacrado pela dureza da realidade.

Algo de mágico e belo ocorre no filme quando o jogador, que até então perdia, passa a recuperar-se. Amanda começa a torcer timidamente para ele. O jogador ganha um set e segue se recuperando; então Amanda passa a vibrar intensamente, o que nos leva a pensar que ela não somente vibrava pelo jogador, mas também pela recuperação da esperança que ali nascia em sua interioridade – de ela mesma poder “vencer” tanto a tristeza quanto a paralisia trazida pela perda de sua mãe. Amanda havia “entrado” completamente no jogo, e isso a permitiu “mover-se” internamente junto à partida, bem como a transformar-se junto à dinâmica que assistia/participava. Ela recebe uma “lição transformadora” daquele jogo, e dele se despede, já estando em uma posição subjetiva distinta daquela à qual esteve submetida há tantos meses.

É a essa capacidade do ser humano de se iludir, ou seja, de entrar em uma situação e projetar-se nela para, assim, poder se mover em sua interioridade e encontrar um novo posicionamento diante da própria experiência, que Winnicott denomina “brincar”. Para o autor, sem essa capacidade não é possível a ninguém viver uma experiência terapêutica; ou, ainda, não é possível nenhum processo psicanalítico progredir. Será tendo isso em consideração que ele afirmará: “quando um paciente é incapaz de brincar, o terapeuta deve se concentrar nesse sintoma principal, antes de interpretar fragmentos de comportamento” (Winnicott, 1971a, p. 83). Para o psicanalista britânico, o processo psicoterapêutico somente pode ocorrer na intersecção entre duas áreas do brincar: a do paciente e a do terapeuta; assim, “se o terapeuta é incapaz de brincar, ele não está apto para o trabalho. Se o paciente é incapaz de brincar, algo precisa ser feito para que se torne capaz disso, e só então a psicoterapia pode começar” (idem, p. 92).

O estabelecimento do brincar demanda uma atmosfera de confiabilidade e relaxamento, sendo tarefa do profissional garantir a própria manutenção desse ambiente favorável para a realização do trabalho de elaboração de seu paciente. Se isso é possível, e o paciente não se encontra em um estado demasiadamente patológico, ou seja, excessivamente defensivo e impedido de experienciar o encontro, a ilusão da comunicação é criada, e ambos podem viver um processo mútuo de transformação. Assim, a única esperança que nos resta é brincar!

 

Referências:

Winnicott, D. W. (1953c) Objetos transicionais e fenômenos transicionais. In: O brincar e a realidade, Ubu, 2020.

Winnicott, D. W. (1989r). In: Explorações psicanalíticas, Artmed, 1994.

Yannaras, C. (2007) Person and Eros. Holy Cross Orthodox Press.

 

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