A short biography:

Dr. Michael Eigen is a psychologist and psychoanalyst. He is an Associate Professor of Clinical Psychology, adjunct professor in the Graduate Program in Psychotherapy and Psychoanalysis at New York University, and a senior member of the National Association of Psychology for Psychoanalysis. He is also the author of twenty-nine books, including Toxic Nourishment, The Psychotic Core (from which this article was extracted), The Psychonalytic Mystic, The Sensitive Self, Feeling Matters, Faith and Flames from the Unconscious. His most recent books include The Challenge of Being Human and Dialogues with Michael Eigen: Psyche Singing.

At the begining of his career, he worked with children with psychotic disorders and from the age of thirty he started working with adults. He was director of a Program for creative individuals at the Psychoanalysis Training Center and was the first director of Educational Training at the Institute for Expressive Analysis. He was also a member of the board of directors of the National Psychological Association for Psychoanalysis for eight years, initially as Chief Professor and later as editor of the Journal of Psychoanalysis.

He taught at many Institutes and Colleges and gave international seminars and lectures. For the past twenty years, he has taught and supervised primarily at the National Psychological Association for Psychoanalyis and the Graduate Program in Psychotherapy and Psychoanalysis at New York University. He has been leading independent study groups on Winnicott, Bion, Lacan and his own work for 45 years.

In our direct contact with Dr, Eigen, we were pleased to meet a gentle, approachable, whole person.

Mchael Eigen

 

Uma pequena Biografia:

Uma apresentação do autor

Dr. Michael Eigen é psicólogo e psicanalista. É professor Associado de Psicologia Clínica, professor adjunto no Programa de Pós-Graduação em Psicoterapia e Psicanálise da New York University, e membro sênior Associação Nacional de Psicologia para Psicanálise. Também é autor vinte e nove livros, incluindo Toxic Nourishment, The Psychotic Core (do qual este artigo foi extraído), The Psychonalytic Mystic,The Sensitive Self, Feeling Matters, Faith and Flames from the Unconscious. Os seus livros mais recentes são The Challenge of Being Human e Dialogues with Michael Eigen: Psyche Singing.

Trabalhou com crianças com desorganizações psicóticas, no começo de sua carreira, e a partir dos trinta anos iniciou um trabalho com adultos. Foi diretor de um Programa para indivíduos criativos no Centro de Formação de Psicanálise e foi o primeiro diretor de Formação Educacional no Instituto de Análise Expressiva. Foi, também, membro da diretoria da National Psychological Association for Psychoanalysis durante oito anos, inicialmente como Catedrático-CHEFE e posteriormente editor da Revista de Psicanálise.

Ensinou em muitos Instituo e Faculdades e deu seminários e palestras internacionais. Nos últimos vinte anos, ensinou e supervisionou principalmente na National Psychological Association for Psychoanalyis e no Programa de Pós-Graduação em Psicoterapia e Psicanálise na New York University.  Orienta há 45 anos grupos de Estudos independentes sobre Winnicott, Bion, Lacan e sobre sua própria obra.

Em nosso contato com Dr. Eigen, tivemos o prazer de encontrar um pessoal total, gentil e acessível.

THE OUTSIDERS

A BRIEF INTRODUCTION

We are a group of Psychoanalysts and enthusiasts of Psychoanalysis, each of whom coming from such diverse backgrounds as the Arts, Language, Medicine, Music, Psychology. Aspiring to be quasi-independent, we are dedicated to the works in the English language of  psychonalytic authors affiliated to or influenced by the Middle Group (Margaret Little, Marion Milner, Guntrip, Winnicott, Balint, etc.). We also study the works of such contemporary  thinkers as Michael Eigen, Christopher Bollas, Thomas Ogden, Adam |Phillips, among others.

We met in 2012. Two years later, we came together as a group and have worked ever since. Over time, some have joined, some have left; some are with us from the beginning and are the group’s foundation and cornerstone. Others made great contributions and treaded different paths. The group strives for exchanges on an equal basis and freedom of expression.

The following members of The Outsiders contributed to this translation work: Ana Paula Aguiar, Cristina Gomes, João Pedro Javera, Marcia Rosenfeld, and William Winkler. The Group currently is:

Adriana P. Telles, Ana Paula Aguiar, Cristina Gomes, João Pedro Javera, Laís Nae Yamaguchi Ferreira, Maisa Weissmann Gaiarsa, Matheus Beraldo, Paulo Henrique Dias, Ricardo Telles de Deus, Rogério José Santos and William Winkler.

THE OUTSIDERS

PEQUENA APRESENTAÇÃO

The Outsiders – É um grupo de psicanalistas e estudiosos da Psicanálise, cujos participantes vem de formações diversas, tais como: Artes, Letras; Medicina; Música e Psicologia, pretende-se independente e se dedica ao estudo de analistas da língua inglesa filiados ou influenciados pelo Middle Group (Margaret Little, Marion Milner, Guntrip, Winnicott, Balint, etc.).

Reúne-se desde 2014. Durante esses anos, sua configuração foi se alterando; alguns membros permanecem desde de seu início e são a base de sustentação do grupo. Outros tiveram uma passagem rápida, como participantes eventuais e outros ainda passaram, fizeram grandes contribuições e seguiram caminhos diversos.  O grupo se esforça bastante para ter um caráter horizontal.

Fizeram parte deste trabalho de tradução os seguintes membro do grupo The Outsiders: Ana Paula Aguiar, Cristina Gomes, João Pedro Javera, Marcia Rosenfeld, e William Winkler. O Grupo Integral atualmente é composto por:

Adriana P. Telles, Ana Paula Aguiar, Cristina Gomes, João Pedro Javera, Laís Nae Yamaguchi Ferreira, Maisa Weissmann Gaiarsa, Matheus Beraldo, Paulo Henrique Dias, Ricardo Telles de Deus, Rogério José Santos e William Winkler.

CAPÍTULO OITO

O Self psicótico

Michel Eigen

Tradução: A. Cristina Gomes e The Outsiders

A PSICOSE É UM FATO DA vida humana, fato esse que a humanidade nunca está longe de experimentar em escala individual ou em grande escala.  Hoje, a loucura é frequentemente usada como uma imagem para descrever a destrutividade humana. Chamamos de louco “o jogo de ameaças” entre nações munidas com armas nucleares. Sentimos que a maioria dos surtos de violência dos indivíduos e das nações são de alguma forma insanos, mesmo quando eventualmente são motivados por injustiças reais. Podemos reconhecer alguns líderes que parecem mais obviamente loucos do que outros, mas podemos também ver a verdade oculta por trás dos que usam uma máscara de sanidade. Nossos jornais diários estão preenchidos com referências a eventos como “demoníacos”, “mal”, e “louco” quando maquinações do poder e da necessidade violam de forma grotesca a nossa noção de limites. Nossa consciência parece ter evoluído ao ponto onde podemos sentir e, pelo menos implicitamente, traçar o fio da loucura em todo o nosso tecido social, cultural e político.

Um pouco como os nossos jornais, embora muitas vezes mais imaginativa e penetrantemente, nossos sonhos noturnos transmitem as notícias loucas do dia. Eles espelham nossos selves loucos e buscam por antídotos. Frequentemente eles buscam chamar a atenção ou lidar com aquilo que nos horroriza. Ou eles simplesmente tentam liberar a tensão de situações difíceis ou impossíveis, feridas crônicas e deficiências de caráter. De muitas formas, sonhos e realidade convergem e comentam um sobre o outro. Em situações ideais um faz o outro avançar.

Aqui estamos preocupados, principalmente, com imagens da loucura. Nós podemos identificar aspectos de um self louco nos sonhos, da mesma forma que podemos localizar elementos radioativos no corpo. Certa licença poética deve ser concedida. Mesmo a expressão “os aspectos do self” é um substituto dramático para atitudes, disposições, capacidades, funções, processos e estruturas mais ou menos coesas e organizadas. Ainda assim algo se perderia se não pudéssemos nos referir a um self louco ou a aspectos loucos do self. Uma linguagem expressiva tem seu próprio rigor e faz suas próprias reivindicações. Deve-se avaliar se tal linguagem enriquece ou leva adiante o nosso senso de realidade psíquica.

Nem todos os pacientes neste capítulo foram diagnosticados como psicóticos. Não se precisa ser tecnicamente psicótico para ter alguns traços psicóticos. A falha ao testar a realidade e manter as fronteiras apropriadas entre o self e o outro é mais difusa do que geralmente reconhecemos. O trabalho clínico com pacientes psicóticos e elementos psicóticos da personalidade podem nos alertar para o que deve ser encarado na arena sócio-política mais ampla.

 

O self corporal corrompido

Os capítulos anteriores (capítulo 2,3,4 e 6) retomei aspectos do colapso de Carl, seu rodopio alucinatório, e a reconstituição do seu senso de self. Aqui quero retomar o encontro de Carl com uma figura onírica particular a medida em que ele melhorava. Essa figura onírica retratava um aspecto da loucura de Carl e abriu um caminho para um relacionamento mais saudável com seu corpo.

Carl sonhou que ele viu um homem medonhamente gordo em um bar ou um restaurante. O homem comia maniacamente. Ele reclinou a cabeça e fechou seus olhos em uma auto absorção voraz. Carl olhou fixamente para esse homem num horror fascinado.  Ele parecia infantil, ainda que grotesco, como se algo de muito errado tivesse acontecido. O homem tinha se rendido completamente a sua fraqueza, porém Carl sentia que ele tinha grande força. A pele do homem cintilava quase que ao ponto de ter um brilho intenso e fantasmagórico.

Carl relembrou de ter visto uma estátua barata em Chinatown, “o Buda Feliz”, um Buda gordo, pequeno e voraz, aproveitando sua autoindulgência. Carl fora pego de surpresa; ele nunca tinha pensado em Buda deste modo. Imediatamente percebeu que aquele Buda era um aviltamento de uma verdade mais profunda, muito parecido com um Cristo de gesso. “A maioria das pessoas simplesmente não consegue tolerar o Buda por muito tempo”, ele declarou.  “Elas precisam se tornar porcos”.  Nas ruas repletas de restaurantes e vícios ocultos para turistas e locais, um Buda que admite a existência e se rende ao desejo físico naturalmente se torna um souvenir de referência. “Olha quão nojento eu sou”, ele parecia estar dizendo. “Se está tudo bem para mim, porque não estaria para você? ”

Não precisei dizer nada sobre o uso de Carl da palavra elas como estratégia de distanciamento. Quando esse sonho ocorreu, ele já tinha o hábito de inverte os sinais ― dentro e fora ― e facilmente aplicava o que dizia sobre outros a si mesmo (ou vice-versa). Ele falou sobre o seu medo de se deixar levar tal qual o Buda Feliz. Desde seu colapso ele se castigava severamente, por causa dos pecados da carne. Antes do colapso, ele se sentia afortunado quando encontrava uma parceira sexual e deleitava-se enormemente. Agora a cisão entre seu self mental e físico ficou aparente e ele sentia uma culpa que o atormentava por “ter se rendido”. Num certo sentido, ele foi de um deleite não-consciente em direção ao inferno.

Ao mesmo tempo, ele estava ciente de que a culpa deveria estar lá anteriormente. Obter parceiros sexuais nunca tinha sido fácil. Ele tinha oscilado entre períodos de prazer sexual e extrema solidão. Ele tinha entendido isso em termos de seu medo das pessoas. Ele sentia que sempre tivera de superar uma tremenda inibição para se aproximar do outro e persistir até o ponto que o sexo bom pudesse ser possível. No entanto, nunca lhe ocorreu de que a culpa era um importante fator na sua dificuldade. Na perspectiva dele, certo tipo de medo era um obstáculo para ele. Se ele ao menos pudesse se livrar do medo, tudo ficaria bem. Agora a culpa parecia ser pelo menos tão importante quanto o medo. A culpa maculava seus êxitos, na mesma medida em que o medo os tinha inibido. Ele tinha que refletir sobre o passado de sua vida e começar a lê-la em termos de culpa tanto quanto de medo, e encontrou traços de ambos.

Desejaria focar nos pensamentos e sentimentos de Carl sobre o homem gordo em seu sonho. Quanto mais eu puder captar sobre sua visão do homem, gordo, mais significativas seriam as considerações sobre o desenvolvimento caso quiséssemos discuti-las. Meu principal objetivo é delinear a estrutura do self cristalizado de Carl através do homem gordo.  Como é comum nos casos relacionados a imagens oníricas pré-existentes, os pensamentos de Carl corriam em direções opostas. Por um lado, ele sentia que o homem gordo não podia ser todo mau. Carl lutava para encontrar algo positivo sobre ele. Afinal, pode-se comparar o homem gordo a um bebê grande. Expressava desejos infantis orais. Ele vorazmente se afirmava. Transpirava grande poder e força, um bebê Buda. Ao poder assimilar tal energia, poderia tornar-se mais forte.

No entanto, o sentimento mais forte de Carl era que havia algo terrivelmente errado com esse homem. Ele tinha a força e o poder de um homem louco. Todo seu poder e força eram usados para ele se rechear. Era completamente cego a todas as outras formas de existência. Ele não sai atrás de nada, a não ser a comida que alcançava com as mãos. “Não era como um bebê? ” Carl argumentava. Mas bebês não têm a expressão que esse homem tinha, pelo menos não em circunstâncias normais. A palavra que Carl encontrou para descrever melhor a expressão que ele viu foi “corrupto”.

Carl podia racionalizar a corrupção que ele via como uma simples destilação da avidez primária. O homem gordo é indulgente perante uma tendência que marca a natureza humana. É o outro lado da moeda da transcendência do Buda, a sombra do Buda, um aspecto da dualidade entre desejo/ não desejo. Mas o sentido de corrupção que Carl sentia ultrapassava a oscilação de tendências naturais da polaridade. O ritmo da necessidade, obtenção e saciedade fora quebrado. O elemento temporal envolvido na falta e obtenção sofreu um curto-circuito. Não é nem mesmo claro se o homem gordo verdadeiramente sentia desejo. Ele simplesmente seguia se empanturrando com um olhar malicioso, cego e louco. Isso foi tudo o que ele fez ou seria capaz de fazer.  Seu sorriso malicioso era grotesco e congelado. A infinitude aberrante em que ele parecia estar prisioneiro não era do desejo, mas uma infinitude na qual o desejo nunca voltaria a acontecer.

Carl lembrou de algumas outras figuras poderosas em seus sonhos. Em particular, pensou em um chefe da Máfia que o intimidava em inúmeros sonhos ao longo dos anos. Em um sonho, o chefe da Máfia estava prestes a ordenar aos seus capangas para matarem um flautista na floresta. Em outro, o chefe aterrorizava Carl com sodomia. Na maioria desses sonhos, Carl sentia medo de ser assassinado e sempre sofria o terror associado com desamparo. O chefe da máfia parecia invulnerável.  Ainda assim o chefe da máfia nem sempre vencia nos sonhos. O flautista, por exemplo, continuava tocando, e Carl não estava sempre paralisado.

Carl viu alguma conexão entre o homem gordo e o chefe da máfia, visto que o homem gordo era o chefe da máfia desnudado. Ele devaneou como a Chinatown e a Little Italy eram tanto próximas uma da outra em Manhattan, como se essa proximidade física representasse alguma verdade psicológica.  Nós falamos sobre o aspecto paterno terrível do chefe da máfia e a dualidade pai/bebê inerente na combinação chefe-homem gordo.  Isso era claramente relacionado com os modos que Carl fora intimidado durante sua infância tanto quanto se referia aos aspectos negativos de minha personalidade. Representavam sua própria identificação com os tiranos reais e imaginários de sua vida. Mas, acima de tudo, o sentimento subjacente que tinha que ser encarado era a sensação de corrupção implacável e insuperável.  Não havia como fugir do encontro com o que ambos chamamos de self corrompido.[1]

O sonho do homem gordo de Carl lhe deu uma vantagem potencial, um suporte no campo de força negativa. Ele se deparou com o homem gordo em um bar, enquanto caminhava pela rua à noite. Ele primeiro viu o homem através da janela; então entrou no café. Embora ele estivesse ficado parcialmente hipnotizado por essa visão, ele não perdeu sua liberdade por completo. Ele não era apenas uma unidade com o homem gordo. Carl era capaz de ver e se mexer. Se Carl era o homem gordo, ele também não o era. Era como se o sonho oferecesse para Carl a chance de ver algo importante, algo para levar consigo e refletir durante as horas de vigília. O sonho partilhava de seu segredo com Carl. Não importava que o segredo só pudesse ser intuito. O que é importante para a terapia é que o homem gordo verdadeiramente implicava e perturbava Carl. Significados surgiram a partir desse encontro e uma intensidade afetiva foi estimulada e estruturada. Com ajuda Carl se manteve aberto ao impacto da figura e a deixou falar. Como resultado, o seu senso de self sofreu outra transformação.

O sonho apresentava o homem gordo como uma revelação. Foi um bom sonho porque preservou uma certa distância entre Carl e uma visão fascinante, senão fantasmagórica, do glutão. Carl não foi engolido pelo homem gordo. Ele olhou com intenção de fazê-lo, como se ele estivesse ingerido o que via com o propósito de aprender e crescer. É difícil admitir tamanho desespero e corrupção na alma humana.  Tende-se a se cegar ou desviar o olhar de tal degradação. Nós não suportamos olhar muito tempo os horrores de nossa condição, e achamos especialmente difícil lidar com o grotesco.

Carl imaginava como seria encontrar o homem gordo e o chefe da máfia. Não se podia ter uma conversa real com nenhum deles. Nenhum dos dois seria capaz de dialogar. A alteridade escaparia deles. Ambos eram completamente materialistas. O Chefe da Máfia dos sonhos de Carl era apenas interessado em poder material, seja na dominação instintiva através da sodomia ou na aniquilação da alma cultural (o flautista gentil, mas persistente). O homem gordo conhecia comida apenas da maneira mais concreta possível. Eles são figuras do ego corporal com ênfases diferentes. Eles são similares, na medida em que a comida=pessoas e pessoas= comida: a vida emocional fica reduzida a dominar e ingerir. O chefe da máfia exercita sua mentalidade pratica sobre as pessoas. O homem gordo é mais obviamente encapsulado. Ele limitou seu mundo ao que pode ser colocado dentro dele de um modo muito literal. O chefe da Máfia precisa de outros seres vivos para exercer suas funções aniquiladoras. Ele age em horizontes mais amplos, nas ruas da cidade, na zona rural. O homem gordo fica em um mesmo lugar e faz uma única coisa, porém o quão libertador era olhar para ele.

Carl comparou sua visão do homem gordo aos tempos em que se sentia zerado, limpo após vomitar. Era como se o sonho tivesse vomitado essa figura, e tudo que ela significava. “Por um longo tempo eu sentia que estava parado em um ponto, fazendo uma única coisa, ” disse Carl. “Anos se passaram deste jeito, atuava como o chefe da Máfia, mas lá no fundo eu era viciado numa pequena parte de mim. “Carl agora via o chefe da Máfia e o glutão nas pessoas à sua volta sem ficar paranoico com isso. Anteriormente, ele tinha sentido a necessidade de lutar ferozmente ou de se esconder quando pressentia no ar um impulso compulsivo por poder ou uma voracidade absoluta. Agora as pessoas pareciam mais transparentes de um modo positivo. Ele podia ver cada vez mais como almas potencialmente boas se tornam distorcidas. Talvez haja um certo propósito no ato de corromper.

Mas mesmo figuras perversas e psicoticamente adictas sugerem mensagens mais profundas. Para Carl, um novo infinito se abriu no coração do mal. Após ver o glutão e vinculá-lo ao chefe da máfia, novas figuras de ego corporal começaram a surgir. Ele sonhava com bons soldados, dançarinos e músicos.  Sustentar sua visão do homem gordo liberava bons sentimentos corporais. O homem gordo não deixava espaço para sentir a vida em um brincar livre. Eu imaginei que ele era uma espécie de continente ruim que aprisionava numa armadilha dentro dele os dançarinos, os soldados e os músicos, figuras perversas e psicoticamente adictas; um tipo de buraco negro que comprimia e aniquilava os materiais psíquicos sugados para dentro do seu campo de força. Por meio dos sonhos, sua atividade crônica fora descoberta e desmascarada.

Carl começou seu contato com o homem gordo com um fascínio tenebroso, mas, à medida que continuava, ele começou a sorrir.  O homem gordo era grotescamente distorcido, mas ele era também divertido. Algo nele cutucava o Carl e o fazia ter vontade de rir. Em parte, era, sem de dúvidas, um alívio não ser engolido. Carl se sentia maior e mais saudável, ao ser capaz de encontrar e trabalhar com figuras como o homem gordo e o chefe da máfia. Porém, ele também sentia algo extremamente engraçado[2] sobre a visão que tinha do homem gordo, que era inexprimível em palavras. Ele não sabia dizer porquê, mas ao ver o homem gordo ampliava seu senso de humor, ou melhor, tornava o humor mais possível. Era como se manter o homem gordo oculto de si mesmo o tornasse mais pesado e mais melancólico, enquanto encarar tal estranheza o tornasse mais leve e, como seus sonhos mostraram, mais capaz de dançar.

Não tenho a pretensão de exaurir o significado do homem gordo para Carl ou para mim mesmo. O fato de estar escrevendo sobre ele após tantos anos de seu surgimento indica que, para mim, ele ainda é uma presença viva ou estimulante. Tais imagens devem ser encaradas em seus próprios termos como “estados eternos”, tanto quanto símbolos de síndromes do desenvolvimento. O sorriso de Carl confirmava isso. Num primeiro momento pensei que tinha visto “o Buda feliz” no seu sorriso, um sorriso corrompido que se identifica com a figura nascida através dele. Mas senti algo inocente também, para além da figura corrompida que ele apresentava. Seu sorriso através do horror tacitamente acenava que nele havia algo mais do que apenas um senso de corrupção, e que esse senso não podia ser diminuído. Era um sorriso de iluminação, um sorriso de reconciliação e transcendência.

 

O Self mental corrompido

As figuras de um self mental corrompido são frequentemente atreladas em dramas à volta de um delírio de ou um desejo de onipotência. A corrupção do self mental depende mais de um senso de onisciência[3]. A onisciência refere-se a um poder mental ilimitado, ao passo que onipotência se refere a poder físico ilimitado. O discurso coloquial discrimina entre o sabe-tudo e o valentão, entre a inteligência e a força bruta. Muitas fábulas sugerem que o self deve encarar tendências polarizadas em formas extremas, como expresso por figuras tais como o Mago/Mágico e os monstros estúpidos e temíveis. O Deus do velho testamento condensa onisciência e onipotência de modo que, às vezes, o faz parecer um bebezão. Onisciência e onipotência podem ser vistas, em parte, como dois aspectos do narcisismo infantil, um enfatizando a realidade mental e outra a física. Na psicose, a transbordamento de qualquer uma das duas pode ser algo que cause horror, mas o impacto da onisciência é ao final das contas mais tenebroso.

É difícil superestimar o papel que a onisciência desempenha no esfacelamento da capacidade de alguém de ter experiências. Se alguém sabe o que vai acontecer antes do tempo, a pessoa não precisa ter a experiência. O indivíduo mal percebe que ele está acostumado à onisciência. De fato, ele vive da onisciência sem se dar conta: pode se sentir ignorante e inferior, ainda que um certo nublamento permeia sua existência. Os detalhes do que ele experimenta, que talvez façam a diferença, ficam encobertos. Experiências não são estáticas, mas o indivíduo que está aprisionado à onisciência pode agir como se elas o fossem.  Ele sabe o que o destino reservou. Tudo é avaliado em termos de sua moldura de referência onisciente.

Paradoxalmente, esse senso de onisciência pode supervalorizar bem como anestesiar a experiência. Por exemplo, a pessoa que atua como mágico pode sentir uma excitação em hipnotizar alguém. Em tal caso, uma personagem que se assemelha ao mago pode tirar proveito da ignorância e estupefação de sua audiência e suas vítimas. Ele assume o papel daquele que sabe, o Mágico Mental, capaz de influenciar as vontades ou exercitar o controle de objetos com a mente. A pessoa que busca poder mental-espiritual frequentemente se movimenta numa atmosfera altamente energizada na qual forças inefáveis são invocadas.

A onisciência tende a se associar à onipotência em cenários alucinatórios delirantes. A Onipotência é brutal em sua exigência por subserviência. Ela pode distorcer corpo e alma, exigir obediência e levar a um colapso.  Contudo, onipotência sem a onisciência que a guie pode ser cega. De formas sutis, um elemento gnóstico concede à onipotência uma força maior. Para ser preciso, a onisciência pode ser uma pretensão vazia. Porém, um sujeito inflado de onisciência se preenche com o sentido de privilegio infinito e impõe sua personalidade aos outros ao invés de sofrer os limites na luta pelo saber.  Exigir privilégios por meio da afirmação de onisciência parece ser um modo peculiar humano de alcançar poder. É uma forma sutil de loucura que está disseminada e assume formas surpreendentemente rebuscadas na psicose manifesta.

Dramas que giram ao redor da onisciência representam um importante papel durante o desdobramento da terapia. Pacientes frequentemente esperam que o terapeuta possua mais (ou menos) conhecimento sobre o paciente e sobre terapia do que o terapeuta realmente possui. Um terapeuta pode ser venerado por possuir qualidades divinas ou ser odiado por não ser suficientemente divino. No último caso, o paciente pode assumir que o analista deveria saber mais. Há a possibilidade do desenvolvimento de uma situação de conluio na qual o terapeuta se sente culpado por não ser melhor, torna-se furioso com as exigências do paciente, finge saber mais do que de fato sabe ou se faz de bobo. Tanto o desejo tácito quanto a adesão a uma onisciência por parte do paciente (ou do terapeuta) podem ficar indetectáveis, serem alimentados ou provocarem retaliação.

Tanto o terapeuta quanto o paciente podem abusar de sua justa alegação de saber mais (ou menos) do que o outro sobre o que está acontecendo entre eles.  Muito frequentemente, a dupla terapêutica resiste a terapia porque cada parceiro luta contra a alegação do outro de saber ou não saber mais. Cada um parece ser um sabe-tudo ou um sabe nada para o outro. Onisciência se opõe a onisciência. Em tais momentos, uma luta de poder gira em torno da questão de quem é mais onisciente. Uma pessoa onisciente convida outros para entrar no jogo da onisciência. Nem analista nem paciente podem sair dessa situação simplesmente por fingir não saber o que sabe. Precisamos entrar e nos digladiar com as capacidades e tensões que nos constituem. Nesse caso nós precisamos entrar no campo da onisciência e tentar explorá-lo.

 

Terapeuta onisciente, a cobra e o camundongo

O Dr. Sabe-Tudo (como vou chamá-lo) começou a supervisão comigo logo após um rompimento conjugal. Se mundo despencou e ele tentava juntar os pedaços. Durante esse período, intensificou-se uma tendência duradoura de dar conselhos e atuar como pai dos seus pacientes. Sua habilidade para tolerar o sofrimento deles diminuiu e ele tentava descobrir maneiras de exaltar, confortar e ajudá-los em suas dificuldades tão rápido quanto possível. Ele agia como se ele soubesse o que deveriam fazer, e era sua tarefa ajudá-los a concretizar o que “precisava ser feito”.

Com alguns pacientes, isso pareceu funcionar por um tempo, mas outros pacientes se tornaram mais perturbados. Ele passou a entrar em pânico à medida em que os pacientes ficam mais desorganizados e com tendências suicidas. Ele prudentemente retomou a sua terapia e a supervisão. Ele estava consciente de que sua necessidade de encobrir as feridas de seus pacientes estava relacionada à sua necessidade de anestesiar sua própria dor. Ele esperava tranquilizar a si mesmo acalmando seus pacientes. Ele tentou esconder a percepção de que ele estava criando uma fachada e que seus pacientes estavam pagando pela sua falsidade.

No momento de sua supervisão que nos interessa aqui, nós focamos em sua onisciência. Ele costumava agir como se fosse o senhor sabe-tudo e esperava que o seu conhecimento tivesse efeitos mágicos, como se ele fosse capaz de dizer algo que fizesse os problemas de seus pacientes desaparecerem. Ele sabia que isso não era possível, mas não consegui se controlar. Sua necessidade de onisciência escorava o seu self frágil.

Dr. Sabe-tudo logo percebeu que uma sensação de que “saber mais que os outros” atravessava a maior parte de sua vida. Esse foi um aspecto que ajudou a construir e destruir seu casamento. Ele e sua ex-esposa tinham se sentido atraídos pelo ar de superioridade intelectual um do outro. No entanto, esse traço não se sustentou. O desprezo crônico implícito nessa atitude impossibilitava a vida conjugal. Da mesma forma, saber mais do que seus superiores, acarretou dificuldades autodestrutivas em diversos contextos profissionais. Na vida social, sua postura de sabe-tudo limitava severamente o tipo de pessoa que ele podia tolerar. Sua onisciência oculta sabotava toda sua vida.

O Dr. Sabe-Tudo era capaz de experienciar mais verdadeiramente o quão mal se sentia dando conselhos, quando sua própria vida estava tão em frangalhos. Quando ele aconselhava seus pacientes, ele sentia um bem-estar extraordinário, porém podia perceber como ele, sutilmente, fazia seus pacientes piorarem para ganhar uma sensação momentânea de superioridade.  Já que seus pacientes viviam uma tormenta similar a sua própria, ele podia experimentar a sensação de estar acima da tormenta. A dependência dos pacientes permitia a sua onisciência mais liberdade de atuar do que ele tinha tido em toda sua vida ordinária.

À medida que o tempo passava, ele se permitia confessar seu próprio desespero subjacente enquanto pessoa tanto quanto como terapeuta. Ele sempre se sentiu inferior-superior e se tornar um terapeuta parecia oferecer uma saída. As pessoas o olhavam com admiração e amplos círculos sociais se abriram. Mas secretamente ele permanecia cínico e perdido. Ele tentava manipular seus defeitos através dos seus pacientes, porém a verdadeira cura escorria pelos dedos.

Apesar dos problemas do Dr. Sabe-Tudo demandarem psicoterapia, nossos encontros de supervisão foram uteis. Ele gradualmente se tornou mais capaz de verbalizar como era para ele estar num consultório com seus pacientes, sem saber o que fazer a cada momento. Não saber exigia que ele ficasse mais atento ao que ele e seus pacientes de fato estavam vivendo, momento a momento. Seu pavor da sua falta de recursos frente a situações de seus pacientes e a sua própria contribuíram para sua fala prematura de uma posição de “parecer saber”[4]. A onisciência consciente e inconsciente que permeava sua vida evitava o desdobramento de sequências experienciais. Fingir saber para estar no controle da situação o mantinha afastado de si mesmo. Desistir dessa segurança e correr o risco exigia ficar perto do impacto genuíno dos seus pacientes e fazer uso mais pleno do que estava sendo evocado.

A luta do Dr. Sabe-Tudo com seu uso inadequado de sua onisciência se refletia nos sonhos de seus pacientes. Um paciente sonhou que uma foca brincalhona podia resolver os problemas que uma velha coruja sábia não podia. Uma paciente sonhou que uma mulher cega agora podia ver. A necessidade de saber tudo tornava essa pessoa cega e correlativamente, não ter que saber tudo permite que ela veja. Nos sonhos de outros pacientes, imagens tais como óculos, livros ou uma câmara eram justapostos com imagens de andar de bicicleta, dirigir um carro, caminhar ou dançar. Isto é, imagens mais nítidas de self corporal e mental eram mais facilmente abarcadas em um único sonho ou uma única sequência de sonhos. Conforme o Dr. Sabe-Tudo saia de sua falsa fachada e tentava tolerar a sua própria experiência real dentro das sessões, seus pacientes podiam também começar a se confrontar com tensões polares básicas.

Gostaria de focar aqui sobre um dos sonhos de uma das pacientes do dr. Sabe-Tudo (vou chamá-la sra. Ferva). O sonho esclarece especial a algumas das questões relacionadas à onisciência. A sra. Ferva procurava ajuda para os estados de depressão e desintegração desesperadora, com as quais ela lidava com atividade social superficial. Ela sentia que estava correndo em círculos que levavam a lugar nenhum. Na terapia, ela se tornou mais desorganizada e Dr. Sabe-Tudo temia que ele tivesse que interná-la. A estratégia clínica que ele adotava para apoiar a conduzir, aconselhar e fazer apontamentos do seu estilo de vida parecia tornar as coisas piores. Sua intolerância à sua própria dor e a de sua paciente reforçavam as manobras de fuga desesperadas dela, que resultavam em uma fragmentação mais intensa.

Conforme sua persona começou a craquelar e seu engajamento com a realidade psíquica se aprofundava, sua paciente pode também começar a encarar a força total daquilo que a envolvia. Ela mostrava ser uma mulher muito sensível, muito responsiva aos estados dele. O sonho que se segue exibe e amplia a complexidade daquilo pelo qual ele estava passando, mas o faz de uma forma que se prova pertinente e autentico para o próprio senso de self da paciente.

A Sra. Ferva sonhou que um ratinho estava preso numa armadilha ou de um algum modo se prendeu por conta própria de tal forma que o corpo dele agia como um tampão para o escoamento da água em um lago. Quando o camundongo ficava preso ou prendia a si mesmo em um certo buraco, o lago se enchia de água. Quando o camundongo sai, a água desaparecia pelo buraco, como se fosse um ralo. Quando o lago se enchia, cobras aterrorizantes nadavam nele. As cobras desapareciam quando o lago estava vazio. A sequência do camundongo ficar preso e o lago se encher de água e cobras, seguida pelo camundongo se libertar e a água e as cobras desaparecerem ocorria repetidamente. Não fica claro se o sonho terminava com vitória e liberdade do camundongo ou com a ameaça das cobras.

A Sra. Ferva e dr. Sabe-tudo ambos sentiram, de acordo com o doutor, que o sonho refletia o dilema da Sra. Ferva. Ela estava dividida. Um lado bom lutava com o lado ruim. Ela devia encontrar um modo de seguir suas tendências construtivas e não destrutivas. Ambos se sentiam bem com a vitória do camundongo e mal quando as cobras venciam. Elas viam o ratinho como inocente e as cobras como más. Dr. Sabe-Tudo associava as cobras com ataques destrutivos sobre as necessidades e esforços. Sra. Ferva sentia certa atração pelo poder das cobras, mas conscientemente identificava-se mais com o ratinho. Ela pensava que podia ter sido perseguida pelas cobras, talvez perto do fim do sonho, mas isso permaneceu vago, enquanto ela também relembrava o senso de pânico e triunfo do camundongo.

Um sonho como esse pode ser trabalhado de maneira produtiva de formas (por exemplo, referências a nascimento e sexualidade são óbvias e úteis; similarmente, pode-se vincular a cena a relações da primeira infância, à relação terapêutica ou outros aspectos do vínculo do paciente com a realidade). Já que estamos trabalhando com a onisciência do Dr. Sabe-Tudo, sugeri que se ativesse ao frágil senso de triunfo do ratinho. Isso levou o par terapêutico a gama de histórias da infância nas quais o lado menor, mais frágil e mais esperto virava o jogo contra o lado maior, mais forte e mais estúpido. O bebê fisicamente frágil manipulava os gigantes que o cercavam; mente triunfando sobre a mater[5].  O bebê desarma a mãe má e seduz a mãe boa. Na verdade, mãe e bebê desarmam e seduzem um ao outro.

O fato de o terapeuta e o paciente acreditarem que o sonho expressava um drama interno já foi um bom prognóstico. Contudo, eles se sentiam ao mesmo tempo legitimados e inseguros sobre o modo excessivamente convicto de como eles tinham estruturado o sonho. Seriam as cobras apenas más e o camundongo apenas bom? Tal ponto de vista estereotipado deve ser considerado como um sinal de que a capacidade de experienciar entra em curto-circuito. O triunfo do camundongo é fácil e presunçoso demais. A vitória do bebê faminto sobre os medos violentos é precária. Na simbologia ocidental, cobras e camundongos são vistos como traiçoeiros em relação às forças superiores. De forma adicional, em muitos mitos, a serpente pode simbolizar os perigos do inconsciente e, às vezes, uma sabedoria mais profunda.[6]

De acordo com a minha experiência de uma certa ingenuidade e rigidez na cognição da realidade psíquica do Dr. Sabe-Tudo e por consequência da senhora Ferva, sugeri que eles explorassem aspectos positivos da cobra e aspectos negativos do camundongo também. No sonho, cobras são associadas à água e, portanto, sugerem processos inconscientes mais misteriosos e incontroláveis. Ainda assim, o camundongo, repetidamente, por sua presença provoca o aparecimento de um tampão para impedir o escoamento da água, como se estivesse empenhado em controlar seus medos. Como consequência, ao se posicionarem em defesa do camundongo, a dupla terapêutica tentou controlar prematuramente uma realidade emocional mais profunda, ou simplesmente ignorar a existência do inconsciente.  O camundongo triunfante fazia a água e as serpentes aparecerem ou desaparecerem, consequentemente colocando os perigos da vida e forças inconscientes em seu poder. O ego menor, focado na autopreservação (camundongo) deseja se antecipar e tomar o lugar do self maior misterioso (serpentes na água: muitas= intensidade) a ponto de eliminar o último inteiramente. Nós talvez fiquemos aterrorizados com a profundidade de nossa natureza, do que é incontrolável na vida, da morte, do predador e da criatividade. O trunfo do camundongo é encontrar um modo de fazer o que é ubíquo se esvanecer.

Em parte, serpentes[7] aterrorizantes na água simbolizam uma onisciência muito maior do que a esperteza do camundongo. É um tipo de cognição que cria sonhos (a “sabedoria do inconsciente”) em contraste com um tipo mais técnico que aprende a manipular as superfícies físicas. Ambas as formas de conhecimento são necessárias e, em circunstâncias ideais, alimentam uma a outra. Elas estão frequentemente em conflito e o sujeito está aprisionado entre eles dois, ora se aliando a um, ora ao outro. A indecisão do sonho reflete uma ambiguidade inerente a tendências de oscilação entre polaridades.

Na medida que o Dr. Sabe-Tudo pode se abrir para o intercâmbio mais amplo das possibilidades, a Sra. Ferva pode experienciar mais prontamente o que eram os aspectos serpentes e camundongos em si mesma em contextos diferentes. Por exemplo, ela se torna um camundongo para evitar seu poder de serpente, que apesar de tudo a atormentava. As fontes primárias da criatividade cederam lugar a uma voracidade de autopreservação. A vitória parcial do ego menor ameaçava seu ambiente psicológico como um todo. Em retaliação, ou como parte de um processo dissociativo, as serpentes sem dúvidas se tornaram malignas.  Na realidade, tanto as serpentes como o camundongo, provavelmente, possuíam elementos destrutivos e criativos.

Deve ser mencionada a relevância dos símbolos oníricos da sra. Ferva para nossa cena cultural mais ampla. Com as imensas forças econômicas e militares de resposta praticamente instantânea nas mãos das nações contemporâneas, maquinações políticas são mais para serpentes do que para gato e camundongo. Hoje em dia, um camundongo (ou grupos de camundongos) podem assumir poderes de serpentes e agir em nome da totalidade psicossocial, apenas para serem dirigidas por fragmentos manipulados da “onisciência”. Sabedoria como um ideal cultural parece uma relíquia arcaica nessa época. O camundongo engole as serpentes e transforma seu veneno a serviço de um cálculo de vantagens minuciosas.  A pose de mostrarmos saber mais do que de fato sabemos quando estamos à beira da catástrofe incita o caos. É um desejo vão querer que um camundongo possa fazer as serpentes ir e vir a seu bel prazer. Talvez precisemos da experiência de desaparecer para redescobrir o processo de construirmos a nós mesmos e nosso mundo do nada. De fato, nós precisemos do desafio de começar do caos terrível que é pior que o nada, um lugar do qual podemos ao menos ler objetiva e incisivamente nossa capacidade de arruinar ou destruir.

 

Onisciência, invisibilidade e “máquina de influenciar” de Tausk 

Nosso senso de conhecimento é uma parte implícita de toda ou grande parte de nossa experiência. É parte integrante da experiência a tal ponto que frequentemente pensamos saber quando, de fato não sabemos. O senso de conhecimento muitas vezes se torna um refúgio e um anestésico. Em certos casos, pode ser abstraído de conteúdos específicos: se torna seu próprio conteúdo. O filósofo pode transformar esse gesto mental em um ato criativo e investigar o conhecimento do conhecimento. Porém, na vida cotidiana e na Psicopatologia, o conhecimento vazio pode substituir o esforço pelo saber. É suficiente relembrar a antiga distinção entre opinião e conhecimento para sugerir o quanto o senso de conhecimento pode ser onipresente e presunçoso.

Ao mesmo tempo, o senso do não-saber também perpassa a nossa experiência. Podemos de distinguir vários tipos de não-saber na vida cotidiana, no discurso científico, na experiência mística e na psicopatologia. Por exemplo, há um não saber da mera ignorância. Desconhecemos muitas coisas. Por mais culto que se possa ser, sempre haverá lacunas. Podemos saber algo sobre o trabalho com psicose, mas não sermos capaz de consertar um avião ou bloqueio cardiovascular. A partir da infância, nossa vida é atravessada por matrizes de conhecimento e pontos cegos. Conhecer e não conhecer são tão finamente entrelaçados que juntos constituem uma característica essencial de nossa capacidade de experimentar. Nós podemos focar no que nós sabemos ou não sabemos ou ainda várias combinações. Nós podemos nos focar na nossa capacidade de saber/não-saber. Em alguns momentos, podemos escolher enfatizar as lacunas, os pontos cegos e o não-saber pode parecer misterioso.  O “caminho do não-saber” pode se tornar um método de abordagem à divindade ou uma postura valiosa em si. Vivemos no e através do não-saber e não-cognoscível à medida que a ignorância simples e diária abre espaço ao numinoso.

É uma característica essencial e paradoxal do nosso ser que saber e não-saber pode ser imbuído com um senso de infinitude. Quase todas as áreas importantes da experiência podem ser levadas ao infinito. Por exemplo, em nossos sonhos, o senso de perigo, tanto quanto o jubilo podem se tornar sem fronteiras. O senso do não-saber leva a uma profunda e fugidia convocação do saber, enquanto o saber pode, silenciosamente, perder-se numa imensidão vazia. Através da consciência nós temos convocações da vida inconsciente. Através de lapsos e vazios sentimos um sujeito mais profundo. A ambiguidade permeia nosso duplo senso de saber/não-saber. Às vezes percebemos que o saber e o não saber se fundem num suspense inefável, arrebatador, de uma paz eletrizante uma que excede, embora nutra o entendimento.

É possível um senso de convergência do saber/não-saber, bem como o senso de infinitude, em parte, porque a experiência em si é intangível e inefável. Não podemos localizar um pensamento como fazemos com o cérebro. Por mais que associemos emoções, centros de consciência com o corpo, leiamos a alma através da face ou dos gestos, algo invisível permanece. Isso pode ser resumido no adágio de que consciência vê e ouve, mas não pode ser vista ou ouvida, ao menos do mesmo jeito que eventos espacialmente localizáveis. A invisibilidade básica da experiência contribui para um senso de ausência de fronteiras que dá o tom na nossa existência.

A experiência mística e a loucura oferecem áreas privilegiadas para testemunharmos a convergência e a ruptura do senso de saber e não-saber. Ambos florescem na invisibilidade da experiência em si. A invisibilidade pode assumir valências contrárias e funcionar para o bem e para o mal. O mal utiliza a invisibilidade como uma máscara. Explora a qualidade invisível da vida mental de forma a mover-se nu e não visível em plena luz do dia. Os horrores de certos movimentos de massa seriam bons exemplos, mas eu vou me conter aqui ao uso paradigmático do “delírio da máquina de influenciar”, já que a influência é uma parte tão importante do aprendizado quanto o é a ameaça. Como veremos o delírio da máquina de influenciar envolve um senso avassalador do mal eminente alimentado pela onisciência oculta que floresce e explora, de modo maléfico, a invisibilidade da vida mental.

No delírio da máquina de influenciar, o paciente psicótico sente que sua mente está sendo controlada desde fora e influenciada por uma máquina longínqua[8]. Tausk entendeu isso como uma expressão projetiva de um self corporal mecanizado. Para Tausk, a máquina é uma petrificação simbólica do corpo sexualmente vivo, e uma tentativa de congelar ou des-vitalizar a ameaça do sentir, da vida si. De acordo com a perspectiva desenvolvida aqui a análise de Tausk é parcial na sua ênfase em elementos cruciais do ego corporal. O delírio da máquina de influenciar também deve ser iluminado pela função do ego mental, em particular, o senso de onisciência e a imaterialidade /invisibilidade da vida mental.

Da perspectiva da onisciência, a permeabilidade e a penetrabilidade do sujeito por uma mente de outrem está em jogo. O “entre” é petrificado, dissolvido e/ou demonizado. O pensamento é interpretado como um poder externo invasivo que emana de uma mente estrangeira e controladora. O corpo fica imobilizado e uma dimensão megalomaníaca, imaterial do poder mental assume o controle.  Fronteiras físicas e espaciais perdem o significado. Pensamentos podem instantaneamente estar em toda parte ou qualquer lugar. Os maiores medos do paciente parecem ficar focados não meramente sobre um corpo reduzido e mecanizado (o último é quase reconfortante), mas também sobre a ameaça eletrizantemente impalpável do poder mental invisível, em si. Um self corporal desvitalizado ou mecanizado e um self mental perverso formam partes de um sistema dissociativo vivido de maneiras que se proliferam impiedosamente. No exemplo da máquina de influenciar, o self corporal não é forte ou vivo o suficiente para suportar o ataque destrutivo da mente demonizada. Tal estrutura dissociativa com seus perigos adjacentes caracterizam muitos fenômenos atuais. Oscila com tendências “fusionais”, a qual fornece um alivio temporário, mas frequentemente intensificam o impasse: o colapso e a intensificação das tensões entre estruturas sociais e psíquicas se propagam em espirais aprisionantes.

Entre os humanos, a questão das fronteiras é muito mais problemática do que a territorialidade entre os animais. A ausência de fronteiras entorno de nosso self invisível potencializa infinitamente o que está em jogo a nível material. A onisciência está enraizada em um senso invisível de ausência de fronteiras e se alimenta do intangível para confundir almas encarnadas. Na onisciência, a estrutura e a resistência da realidade física cedem. A imaterialidade da mente parece se esparramar através da existência física, mais radicalmente do que no delírio onipotente, onde o mundo retém uma primazia física. Na onisciência, a fisicalidade rui frente ao poder mental.  Isso não significa que essa onisciência ignora a existência física. Ao contrário, busca dominar e triunfar sobre ela, e arrancar seus segredos. Sua transcendência, no entanto, facilmente se torna perversa, perdendo o respeito pelas forças que competem com ela. A onisciência manipula a onipotência. A onipotência se torna uma arma da onisciência. Tirano escraviza tirano. A psique é tragada pela sua própria intangibilidade.

Nossa jornada, no sentido do infinito é, ironicamente, limitada não pela finitude do real (o que é sua matéria prima) mas pela nossa descoberta de infinitudes alternativas, pretensões infinitas. Se formos minimamente honestos, mais cedo ou mais tarde, nós vislumbraremos com o quão completamente estamos envoltos no sentido de uma onisciência equivocada. A onisciência não é algo que pode simplesmente ser arrancada da nossa natureza, tanto quanto o ato de respirar. Nós devemos aprender como respirar com ela, como seguir suas transposições e como interagir com ela de modo benigno. Nós devemos ter tanto cuidado com a onisciência quanto temos com qualquer capacidade vital que nos constitui, já que nossas tentativas especulativas podem ter resultados inesperados.

 

Onisciência e a Não-Integração de Winnicott  

A maior preocupação clínica de Winnicott ao longo dos seus escritos é uma loucura velada que arruína a vida humana. Um dos principais sintomas da loucura a que Winnicott se refere é um senso persistente de que não se é inteiramente real, de que há algo falso ou vazio sobre a própria vida, de que não se vive verdadeiramente. A obra de Winnicott explora profundamente a importância enfatizada por Federn no vínculo entre loucura e o senso de não se sentir real (“despersonalização”)[9].

Em certos indivíduos, a loucura é óbvia e o senso de irrealidade inevitável. Em muitos outros, ela trabalha silenciosamente, talvez só seja visível na erosão gradual da qualidade da vida do indivíduo e na deterioração da capacidade de gerar sentido vital e viável. Winnicott descreve a possibilidade da terapia explorar o que é aparentemente saudável no paciente, mas simultaneamente encobrir dificuldades que possam parecer intratáveis, mas que são centrais para mais um senso básico do self. Por exemplo, ao falar de casos borderline, ele adverte sobre o perigo de ser enganado por defesas neuróticas, quando o problema central é psicótico. Ele escreve:

Em casos desse tipo, o psicanalista pode entrar em conluio durante anos com a necessidade que o paciente tem de ser psiconeurótico (em oposição a louco) e ser tratado como tal. A análise vai bem e todos estão satisfeitos…na realidade, porém, ele sabe que não houve mudança no estado subjacente (psicótico) e que analista e paciente alcançaram êxito ao entrar em conluio para ocasionar um fracasso. [10]

Para trabalhar com a dimensão psicótica, a qual é crucial para a reconstituição do Self em níveis mais profundos, é necessário um setting que permita ao sujeito brincar, lançar-se a um estado de ausência de forma e se tornar não-integrado por períodos de tempo. Para Winnicott, “brincar”, “ausência de forma” e “não-integração” são partes do nexo de experiências relacionadas que reforçam e enriquecem uma a outra. A atmosfera que permite o surgimento de tais fenômenos é em grande medida evocada pela qualidade perceptiva do terapeuta. Acima de tudo, o que é necessário é que o sujeito experimente o senso de criatividade que é a verdadeira essência do sentimento do verdadeiro self. Winnicott escreve:

É no brincar, e somente no brincar, que o indivíduo, criança ou adulto, pode ser criativo e utilizar sua personalidade integral: e é somente sendo criativo que o indivíduo descobre o eu (Self)[11]

A pessoa que estamos tentando ajudar precisa uma nova experiência, em um ambiente especializado. A experiência é a de um estado não-propositivo, uma espécie de tiquetaquear, digamos assim, da personalidade não integrada. Referi-me a isso como amorfia na descrição de um caso (Capítulo II).[12]

O indivíduo que se sente irreal deve ser ajudado a aprender a brincar. Para que o brincar ocorra, Winnicott tentar criar uma atitude e uma atmosfera na qual o indivíduo possa relaxar em uma intensidade mais profunda, ser capaz de rabiscar psiquicamente, deixar acontecer. Isso não significa que esse brincar é simplesmente sem propósito.  A psicanálise e outras disciplinas nos ensinam muito bem qual a dor que a criança busca amenizar ao brincar. No entanto, um momento não propositivo é necessário antes que se torne claro a forma sobre a qual alguém precisa trabalhar. O brincar da criança oscila entre construir e destruir, escaneamento inquieto e vago, descobertas fortuitas, interesse apaixonado, deixar as conquistas de lados, inabilidades dolorosas, acidentes felizes e infelizes, sorte e determinação. A criança está intensamente viva no brincar real e isso é justamente o que o paciente atormentado com o senso de irrealidade é incapaz de alcançar.

Winnicott enfatiza a necessidade de o analista ser receptivo. Ele deve emprestar ao paciente uma presença viva e perceptiva, uma atmosfera implicitamente rica em nutrientes psíquicos. Ele também deve ser capaz de brincar, para permitir oscilações espontâneas entre forma e ausência de forma. Muitas vezes, é a atitude ou o humor do analista que determina se é possível ou não cair na ausência de forma. Um elemento crucial na criação de uma atmosfera facilitadora é que o analista não faça de conta que ele é onisciente.

O perigo do terapeuta de se fazer de onisciente é praticamente onipresente. Na feliz colocação de Lacan, o analista é cercado pela tentação de assumir o papel “daquele que é

Assume o papel do suposto saber”.[13] Tanto o paciente quanto o analista gostariam da segurança de alguém que sabe. Muito trabalho árduo, paciência e revisitação de si e do outro é necessário para começar a se habituar a não saber as respostas (ou mesmo as perguntas e problemas certos), e ao mesmo tempo permanecer aberto. A pessoa sofre a constatação de que a liberdade nasce da escuridão do não-saber e dos limites do que é dado a alguém ver. Quanto mais se tolera ser fundado na escuridão, menos perdulária se torna a relação com a luz. A impossibilidade de apreender-se a si próprio e uns aos outros nos distancia de uma onisciência indiscriminada.

Winnicott escreve: “Penso que interpreto principalmente para deixar o paciente saber dos meus limites do entendimento”[14] Ele fala então que o paciente saberá que ele não é onisciente, assim então o paciente experimenta que ausência da onisciência é possível. Isso não significa que Winnicott finja estupidez. Fazer-se de bobo é o outro lado da onisciência. Winnicott não é bobo.  Suas melhores interpretações são inspiradas e até mesmo, segundo ele, aparentemente loucas. Elas preservam e aprofundam o vínculo entre a experiência e o saber. O método de não-saber que ele recomenda, trabalha no limite do saber e além, não é simplesmente a aquiescência da vontade de não saber.

Na obra de Winnicott, não saber e não integração andam juntos. O que é crucial é que o analista não finja saber sobre paciente mais do que ele de fato sabe.  Isso dá espaço ao paciente e ao analista. O paciente também fica aliviado por não precisar saber mais do que realmente sabe. Isso o ajuda a se livrar dos mitos que teceu ao redor de si e tornar-se não integrado. Para Winnicott, desintegração significa apegar-se a algo possível, mas um processo que não se pode controlar e lança o indivíduo para fora da existência. As maneiras como tentou se manter integração não funcionaram, e o caos que somos assume o controle.

Não integração, por contraste, é um estado “mais puro”. O sujeito mergulha em um estado criativo de ausência de forma. Ele vive entre as bordas de sua personalidade construída. Ele retorna ao ponto onde estava antes que o encapsulamento defensivo assumisse o controle. Está implícito na visão de Winnicott que sentimos a nossa alma de bebê tal como era antes de ter sido maculada, que indícios de um fio intocado continuam ao longo da nossa vida, que nunca perdemos o contato com algo que sentimos ser o nosso self mais precioso.

Não-integração se refere ao Caos da experiência antes de se cristalizar em formações psíquicas que podem ser usadas defensivamente. Refere – se a um tempo ou dimensão da experiência anterior à habilidade de cindir e opor aspectos do self entre si (notadamente mente-corpo, pensamento-sentimento). É um estado que se mantém entre organizações a que se pode reparar, uma espécie de descanso no qual se esquece o que se pensa ser, um momento de imersão alheia no nada. É um deixar ir e limpar. É um alívio livrar-se de si mesmo e sentir a ordem mais profunda a que o “caos” não-integrado conduz. Nele, se percebe um tatear em direção a um “rosto originário”.

Isso não significa que o rosto originário de alguém seja sempre “bonito” ou que não haja atrito. Em momentos não-integrados, pode-se experimentar um profundo bem-estar que dificilmente se imaginaria possível. Mas as iras que consomem tudo também sobem e descem, à medida que o clima emocional muda. Ou podemos ser tomados por um terror além das palavras. Na não-integração, não se está congelado em nenhuma posição. Ele se refere a um tempo no bebê antes que se possa processar adequadamente ou dar sentido a muito do que se está experimentando. Ainda não é possível separar-se do ato da experiência.

Em um estado não- integrado, não se sabe ou pensa que se sabe o que acontecerá a seguir.  Não se está enclausurado em si mesmo. Certamente, a criança se isola, caindo em um “entorpecimento” ou evitando a atenção. Mas geralmente a atenção retorna. A tempestade ou irritação passa. A criança começa do nada, tudo de novo. Em casos extremos, deve se anestesiar a maior parte do tempo, mas isso não é comum. É mais comum que o ser humano se feche e criem uma cisão dentro de si, de um modo mais crônico, um pouco mais tarde, quando desenvolve os recursos mentais para fazê-lo.[15] Com Winnicott nós ganhamos um senso de quanto o viver caminha em um estado não integrado e   quão desolados e irreais podemos nos sentir sem isso.

Winnicott conecta a condição de estar vivo do sonhar com não-integração e opõe ambos à prática rotineira das fantasias crônicas. Nessa sua visão, não integração conduz para o sonhar, a qual funciona, enriquece e estimula experiências emocionais vitais. Através da não-integração, a personalidade ganha a chance de se redefinir ou se reformar. No descanso e no vazio genuínos, surgem imagens que remetem ao estado do si mesmo e redirecionam o movimento deste último. Na medida em que uma pessoa é viciada em fantasias estéreis compensatórias, ela tende a mutilar o acesso a desejos mais profundos e espontâneos de reorganizar-se. Para a maioria de nós, fantasiar pode ser inevitável. Fantasias marcam nossas feridas e esperanças. Mas, na medida em que cobrem o mesmo terreno e não levam a lugar nenhum, funcionam como miragens, mesmo que finalmente se tornem realidade.

O mesmo não se aplica à capacidade de sonhar. O sonhar esfrega o nosso nariz em realidades das quais esperamos fugir na fantasia. Nos sonhos, um inimigo pode aparecer com uma boa roupagem, uma possibilidade negada a ele em nossos devaneios conscientes. Nesse sentido, nossos sonhos são verdadeiros cristãos, sem olhar a quem. Eles nos forçam a focar naquilo que preferiríamos rechaçar. Eles nos ensinam que a verdadeira trama do self inclui o que nos antagoniza. Nossos sonhos desmentem nossas pretensões de estar no controle a qualquer custo. Mas eles também fazem mais. Pois, ao sonhar, pode-se ter um lampejo de um mundo experiencial para a além da imaginação consciente, que se fará de modos surpreendentemente esperançosos. Fantasias de satisfação de desejo são pálidas em comparação com o êxtase inesperado que o sonho pode trazer. Em certa medida, a descrição de Winnicott é uma reminiscência do adágio hindu que vida consciente é o passado, o sonhar é o presente e o vazio de um sono ausente de sonho é o futuro. Ele elaborou essa intuição milenar à luz de preocupações psicanalíticas e do viver contemporâneo.

 

Não-Integração, Loucura e Suicídio

Falar de um marco zero da personalidade ou de um momento de ausência de forma é uma metáfora, e também mais que metáfora.  Toca um senso de mistério que permeia a existência. Na teologia negativa[16] , Deus é definido pelo que ele não é, sua falta de definição, o incognoscível dos incognoscíveis. A polaridade entre ordem/desordem sucumbe. Conceitos de caos e não-existência convergem assintoticamente. Permeia-nos um sentimento de que algo acontece para além do que é palpável, e que seu resultado somos nós. A noção de causalidade, seja mágica, teológica, poética ou científica, até agora não esgotou essa intuição informativa.

Berdyaev[17] fala de uma “liberdade meontica”, uma sensação de ser continuamente desfeito e renascer, como uma dimensão constituinte e potencialmente salvadora do nosso ser. Ele descreve um tipo de escuridão sem limites associado a um desmanchar das categorias usuais, laços coletivos e distorções pessoais. Extraem-se imagens do útero, nascimento, sono e morte para descrever a perda amorfa do Self, mas elas em si são excessivamente limitantes. Na visão cristã de Berdyaev, ele associa essa perda do Self a um renascimento complementar por meio de um Outro, em última instância, misterioso, arriscaria dizer pessoal. Winnicott, também, associa a ausência de forma criativa, não saber, não integração, e caos com transubstanciação, comunhão, um sentimento “eu, mas não-eu”, a dimensão “entre”, e um senso generativo paradoxal do self e do outro que não pode ser rigorosamente localizado.[18] Uma investigação sistemática do vínculo entre uma queda na falta de forma e o renascimento através do Outro está além do escopo do presente trabalho. No entanto, o fato de que importantes pensadores do campo da Religião e da Psicologia fizeram e enfatizaram essa ligação é relevante.

Nem a dissolução nem o renascimento podem ser usados como critério para doença ou saúde. Seja na doença ou na saúde, a não integração pode ser tão ameaçadora quanto renovadora. O Self psicótico frequentemente vive perto do sentido de renascimento. Em momentos maníacos, o Self sente que todas as coisas são possíveis. Na depressão, o self sente que nada é possível. Tanto na saúde quanto na loucura, a pessoa encontra os humores e atitudes de vários matizes que marcam o campo da experiência humana. Talvez um elemento da saúde seja a habilidade para lidar com os humores e visões de nosso destino comum e permitir que se transformem em algo útil. Não é suficiente falarmos de um teste de realidade como a função essencial que discrimina o são do louco. Estamos aprendendo com demasiada crueldade o quão a adição “a realidade” pode ser escravizante, corruptora, empobrecedora e perigosa. O aviso bíblico de que “pelos seus frutos os reconhecereis”[19] é talvez o mais perto que podemos chegar a um teste sensato de quem somos. Nossos “testes”, como a realidade, permanecem fugidios e sugestivos, variáveis em qualidade e resultados. A tradição bíblica em si é um dos nossos maiores testamentos da fragilidade e do potencial do que a realidade pode significar.

Nos últimos anos, dois dos membros aparentemente mais sãos da comunidade psicológica se suicidaram pulando pela janela. Um deles tinha sido presidente de uma organização de prestígio profissional. Talvez nunca saibamos plenamente em detalhes o que aconteceu. Aparentemente, ambos estavam vivendo um episódio maníaco que mostrava sinais de diminuição de intensidade. Ouvi de um amigo de um desses homens comentar: “ele se senti tão bem, não queria cair doente novamente”. Mas caiu. Talvez ele quisesse voar. Talvez ele esperasse voar para sempre. Talvez tivesse certeza que iria finalmente cair em terra firme. Talvez dramatizasse o que era estar por cima e por baixo, da forma mais plena de que era capaz. Talvez assumiu o controle do movimento de queda do self do modo mais convicto possível. Poderíamos tecer muitas outras fantasias. O que quer que os movesse, não eram circunstâncias isoladas. Hoje ouvimos com frequência a respeito da vida exemplar de um suicida.

Eu conheci um desses homens razoavelmente bem. Costumávamos às vezes nos encontrar em reuniões profissionais e trocar ideias. Ele se apresentava como um homem muito gentil e amável, um aristocrata. Uma de nossas discordâncias ao longo dos anos se centrava no lugar que o ódio ocupa na terapia. Ele enfatizava o amor e tinha uma tendência a ver o ódio como defensivo, até mesmo irreal. A realidade do amor dissolveria o ódio. Ele firmemente acreditava que se o terapeuta fosse verdadeiramente amoroso o suficiente, o paciente não odiaria. Para ele, o ódio do paciente servia de testemunha de uma deficiência do terapeuta. O próprio ódio do terapeuta também era uma defesa contra a vulnerabilidade e deveria ser dissolvida pelo contato com um amor mais profundo. Em contraste, minha opinião era que o demônio deve ter seu espaço. Mesmo que o ódio seja em última instância secundário, ele é ainda assim é real e tem seu lugar. Não seria uma boa ideia eliminá-lo tão facilmente ou tratá-lo tão condescendentemente.

A atitude do meu colega em relação ao ódio parece ser parte de uma convicção maior. Ele era um homem bom e são. Não posso me lembrar de nenhuma situação em que ele se permitisse flertar com um momento de loucura. Em público, ele sempre “parecia bem”[20]. Não acho que ele se preservava tanto já que ele estava enamorado com uma persona que trabalhava para ele. Acho que ele gostava de mim pelas coisas “malucas” que eu podia dizer, mas no final das contas ele se apresentava como uma pessoa mais centrada e uma figura paterna.

As máscaras de sanidade que as pessoas usam nem sempre funcionam bem para elas. A adicção a elementos da personalidade que se considera sãos pode ser destrutiva. Algumas pessoas preferem morrer do que arriscarem o contato com a loucura. Ernest Hemingway, por exemplo, desempenhou na vida uma imagem viril. Ele idealizou um tipo específico de coragem física, mas explodiu seus miolos ao invés de encarar o tipo de jornada que se impunha a ele pela sua psicose iminente. Ele não tinha coragem e recursos para enfrentar e fazer algo de sua loucura. O lema Tao: “Na tempestade as árvores quebram, mas o bambu se verga”, pode aplicar-se aqui. Para Hemingway, a loucura era uma humilhação que ele não estava disposto a atravessar. Seu senso de dissolução era fim e não uma passagem. Isso marcou o fim de tudo que ele sabia ser, tudo o que ele valorizava e apostava. O fato de que aquilo poderia marcar o fim de uma posição unilateral lhe pareceria aterrorizantemente sem sentido.

Heróis míticos frequentemente sofrem feridas, desmembramento e morte torturantes como parte de um processo de transformação maior. Há um perigo de se tornar excessivamente masoquista através da identificação com esse aspecto do crescimento, com os quais os aspectos masculinos lutam. Hemingway não seria capaz ou não poderia ceder a esse tipo de fragmentação. Nietzsche entendeu a efeminização vinculada à imagem do deus moribundo e decidi superar isso. Ele procurou atravessar a loucura com uma espiritualidade masculinizada, o qual é um traço do ego mental e equivalente à orientação do ego do corporal circunscrito de Hemingway. De um modo específico, cada um deles possuía um ego paranoico e rígido, não à altura de sua tarefa nem capaz de fazer as pazes com o fracasso. Mas ambos conheceram o fogo e expeliram fagulhas no processo.

Sylvia Plath ficou presa entre um acontecimento criativo que faz uso da loucura e uma persona excessivamente constrita, uma persona de “boa menina”.  Suas cartas para sua mãe oscilavam entre expressões de ódio e sua necessidade de ser boazinha. Sua mãe entendeu o ódio de Plath como sendo uma expressão de sua loucura e a boazinha, garotinha amorosa como seu self verdadeiro. Seu terapeuta, também, parecia tomar partido com seu self sadio contra sua loucura, uma distinção que provava ser artificial a medida que a sua jornada criativa e pessoal continuava. Não parecia que ela tivesse encontrado um contexto capaz de sustentar sua necessidade de amor e ódio, de vomitar e reter. Sua criatividade usou as duas tendências e atuou como um veículo parcial para permitir o entrelaçar da sanidade e da loucura.

No Deus Selvagem, Alvarez a descreve o suicídio de Plath como uma autoafirmação sobre e contra o que era sentido como condições internas e externas insuportáveis. [21] Ele elabora o famoso ponto de vista de Binswanger, que este desenvolveu em seu artigo sobre o caso de Ellen West.[22] Após um longo período psicótico, Ellen West foi tratada na clínica de Binswanger. Pouco depois dele dizer aos pais que ela não tinha esperança, e ela cometeu suicídio. Ele viu o suicídio dela como uma autoafirmação final em uma situação de desesperança. Ela se afirmou do modo mais digno que lhe foi permitido.

O caso de Binswanger é considerado um clássico da psicologia existencial. Ele traz maravilhosas descrições sob vários aspectos do mundo fenomenológico de Ellen West. Uma geração de psicoterapeutas existenciais o usou como modelo na análise fenomenológica. Durante o seu trabalho, ele escreveu com desdém sobre a psicanálise “clássica” anterior de Ellen West como árida e ineficaz. No entanto, ele parece ignorar o fato de que ela ao menos ela sobreviveu. Ele não vinculava seu suicídio com a expressão de desesperança dele, exceto de um modo aparentemente egocêntrico. Ele parecia sentir que ela estava melhor morta do que viva, já que vivia como uma morta viva, e que sua afirmação precipitou uma escolha genuína.

Ao comentar o caso, Carl Rogers simplesmente disse que Binswanger nunca a ouviu.[23] Talvez ninguém nunca a tenha ouvido. Certamente a atmosfera apresentada nos relatos de Binswanger é pesada e sufocante. Talvez esse seja compatível com o mundo de Ellen West. No entanto, o comentário simples de Rogers parece atingir o alvo. Binswanger não queria que Ellen West fosse agressiva. Uma atitude de repulsa permeava seus comentários sobre o seu mau comportamento. Ele de forma não automática descreve sua própria atitude punitiva em direção a ela quando ela não era “uma boa menina”. Ela não tinha espaço na clínica de Binswanger para ser ela mesma. Ele parecia não perceber que ele avaliava suas produções de acordo com o modo que ele queria que ela se comportasse. Tamanha inocência e cegueira numa posição de poder é chocante, ainda mais quando quem está no comando é tão brilhante, sensível e investigador.

Mais recentemente, criticas feministas descreveram Sylvia Plath como uma vítima de uma sociedade dominada por homens. A voz da “deusa puta” (“Saída das cinzas/ me levanto com meu cabelo ruivo/ e devoro homens como ar”)[24] É interpretada como uma tentativa de Plath de dar voz aos sentimentos profundos em mundo masculino, uma voz de um anseio em fúria, horror e vingança, sufocados por tanto tempo. A tendência de críticos do sexo masculino de atribuir a culpa da psicose de Plath à sua mãe também recebe resposta. Em sua peça comovente, “ Letters home”, Rose Leiman Goldemberg descreve as diversas nuances da relação entre Sylvia e Aurélia Plath de uma maneira que torna difícil e sem relevância dizer que uma outra ou outra tinham culpa[25].

Se for necessário, podemos facilmente construir um histórico clínico. Há pouquíssimas dúvidas que a mãe de Plath pressionava e cuidava de sua filha e que a morte de seu pai (quando ela se aproximava da puberdade) a feriu. Além disso, pode-se notar que seu pai estava empenhado em escrever um livro sobre abelhas durante os primeiros dois anos de Sylvia, com a mãe ajudando-o. O agregado familiar deve ter estado dividido entre a absorção na sua tarefa e o novo bebê. Podemos também falar sobre sua dupla identificação com a energia da mãe e a má saúde do pai. Depois de falar de mãe, mencionamos o pai e vice-versa. Nós nem sequer mencionamos irmãos ou parentes (ou, mais tarde, marido, mundo social e cultural, e assim por diante). Quanto mais profundamente entramos na história, mais a causalidade se torna ambígua e vertiginosa.

Como costuma acontecer, o debate sobre a causalidade (quem ou o que é “culpado”) obscurece realidades e problemas estruturais significativos. Tanto as imagens do pai quanto da mãe nos poemas de Plath se alternam entre o ameaçador e o inspirador. Ela usa a linguagem da catástrofe e do colapso. Os espelhos (a mente) oscilam entre ser imaculado e quebrado. Eu abro “Ariel” aleatoriamente e nas duas páginas, ou 37 linhas, ante mim encontro mais de uma dúzia de referências a assassinatos, mortes, ardências, armas e holocausto.[26] Uma alma está sendo dilacerada e atravessada. Mesmo a escuridão interior é ardente e estilhaçante. O sentido dessa horrível desintegração é intensificado pelo contraste com uma unidade intocada, o grito de uma criança condenada pelo destino (Por exemplo: “É um coração, / Esse holocausto por onde perambulo, / Oh criança dourada que o mundo irá matar e devorar”.)[27]

Mas, muito mais importante em sua poesia são os amalgamas e fusões entre os sexos, propriedades de objetos, zonas e funções corporais, dimensões (acima e abaixo, dentro e fora, materialidade e imaterialidade) e em geral o modo em que o senso de devastação e pureza ferida se espalham por todas as polaridades. Distinções tendem a acasalar, colapsam na unidade da dor insuportável e finalmente uma devastação para além da dor. Distinções cruzam os céus como meteoros e seus poemas gritam agudamente ao longo de um horizonte de dor incandescente que mingua quase como se nunca tivesse existido. Nós despencamos nesta escuridão junto com ela, apenas para encontrar seu dilaceramento límpido a medida que ele e nós escoemos. Talvez o paradoxo final seja que, a medida em que escoamos em direção ao esquecimento, sentimos que ela e nossa mente trabalhando à toda velocidade.

Nós estamos na encruzilhada do possível. O giro, a colisão e a fusão das distinções em alta velocidade talvez sejam um prelúdio para uma profunda reorganização que pode vir a produzir uma experiência capaz de nos redirecionar e sustentar. Pode ser uma gota em um abismo em que todas as coisas são possíveis, o infinito sem forma, o vazio fecundo. Há momentos em Plath, que se aproximam disso. Ela parece sentir que pode mergulhar em um estado de mente vazia[28] que aumenta sua criatividade. Ao mesmo tempo, o vazio que ela vislumbra e que a toma é um buraco negro de horror infinito. O “nada etéreo” que ela nomeia é um horror inominável, dilaceração, sem lar ou fronteiras. Por meio de seus poemas ela é capaz de dar ao horror sem forma a forma e a sensação de uma faca se movendo tão rápido quanto a luz. Pode-se sentir a agonia das trevas à medida que a luz a corta.

Em termos de Winnicott, a não-integração potencial oscila com e cede à fragmentação e desintegração. Em termos de Bion, o continente inconsciente deforma e é deformado, um horizonte interno disforme que distorce o que aparece nele. Por um tempo, o continente pode estirar-se para tentar acomodar os pensamentos e sentimentos que ameaçam mutilá-lo. Está em perigo de fragmentação ou afinamento a tal ponto que o resultado é a difusão total. Bion fez uma analogia entre a possiblidade de afilamento, em vez de quebra, e o choque cirúrgico, no qual sangra-se até a morte dentro dos próprios capilares dilatados.[29] Por outro lado, a ruptura do continente não provoca seu desaparecimento tanto quanto na proliferação de fragmentos em que cada um desses fragmentos pode funcionar como perseguidor ou engolidor.[30] A situação então é um bombardeio ininterrupto de fragmentos demoníacos ou ameboides da vida psíquica que incessantemente penetram e engolem um ao outro, lascas de mente altamente carregadas rumo ao estado de inconsciência.

Essa situação não é diferente da de Van Gogh. Van Gogh experimentou uma realidade ampliada que ameaçava inundá-lo.  No seu auge, a excitação de sua inovação perceptivo-imaginativa fundiu-se com a sua realização na busca estética. Um vínculo espontâneo entre suas hiper catexias de certas áreas da experiência e formas sensoriais o sustentou.  Em poucos pintores a “dialética” entre a luminosidade da capacidade de sentir e a escuridão da inconsciência [31]  alcançaram tal elevação. À medida que ele se aproximava de escolher entre a loucura e o suicídio, sua obra tornou-se mais sombrio. No entanto, a escuridão em si é mais sinistra na medida em que arde com a luz.

Em seus últimos trabalhos, é difícil dizer se a escuridão devora a luz ou vice-versa. Elas se fundem em um modo macabro, desesperado, em algum lugar entre a loucura e a morte.  Se suas pinturas finais expressam, defendem-se, e fogem quando se deparam com a loucura, elas são também máscaras da morte. A morte que aparece nelas é uma negritude iluminada. A morte brilha. Absorve e torna-se parte da loucura. É impossível dizer se a morte absorve a loucura ou a loucura absorve a morte. Essas pinturas são a face da morte e o que brilha nessas faces é a loucura. A realidade ampliada e deformada converge em direção a um ponto zero. A morte que Van Gogh descreve é ela mesma infinitamente louca, uma inconsciência distorcida. Quando alguém olha para o rosto de sua morte, sente que além da sepultura não é a morte, mas a loucura que tem a última palavra. Mas é, finalmente, a pintura que encaramos.

Não podemos dizer com certeza o que poderia ter ajudado Van Gogh. Não sabemos qual combinação de alcoolismo, epilepsia e loucura o arruinou. O quadro clinico que geralmente está disponível é de uma alma hipersensível que foi rejeitado por seu pai e que consequentemente sofreu profundas crises autoprovocadas. Não há dúvidas que o ódio a si mesmo foi um elemento crucial de sua natureza. Mas também o foi uma profunda fé em si mesmo e, acima de tudo, o poder da criação. Algo nele persiste com tenacidade com um mínimo de estímulo e aceitação. Ele tinha que pintar ― e o fazia. Frequentemente se aponta que os ataques e dúvidas a ele mesmo o retardavam. Ele pintava melhor quando se sentia bem ou ao menos durante períodos de trégua das crises. Mas sua teimosia era o outro lado de seus ataques e dúvidas. Era como se o ódio a si mesmo tanto o alimentava quanto o sufocava. Uma rigidez e fixidez perseverava com a mesma força cega de seus ataques. Talvez ele precisasse do desafio de realizar algo improvável e impossíveis para que pudesse chegar a concretizar algo. Ele precisava da fragilidade como um contraponto para chegar ao esplendor.

Repetidas vezes seus ataques tentaram anulá-lo e ele emergiu com nova visão. Ele viveu o arquétipo do renascimento de um modo deformado e quase abortado. Ele precisou se destruir para começar de forma limpa e nua. Se ele pudesse ter encontrado a ajuda de que precisava, seu sistema de auto ataque poderia ter alcançado sua função de limpeza de forma mais sadia. Mas, devido ao seu temperamento, família e condições sociais, ele fez uso das ferramentas que tinha disponíveis. No seu caso, um ódio a si mesmo distorcido teve que assumir a função de dilacerar sua personalidade a fim de continuar fazendo um bom uso do terreno primordial de seu ser. (ver Capítulo 5)

A longo prazo, Plath, van Gogh e Hemingway não conseguiram achar um modo de trabalhar com a alternância rítmica básica entre o desmoronar e o reunir. Eles lutaram contra isso como se fosse um corpo estranho. Eles sentiram que não deveria ser assim e resistiram. Eles estavam certos no sentido de que eles sabiam que algo estava errado com eles, algo que estava além de seu controle. Algo horrível tomou conta deles e os fez impotentes. Plath começou sentindo que sua loucura era estrangeira e removível, mas acabou sentindo que era a parte mais real dela, essencial para sua criatividade. Ela não tinha os recursos e a moldura emocional de referência para absorver essa percepção crescente. Van Gogh tinha uma ideia vaga de que seu olhar e seus ataques tinham algo em comum, mas lutou até o fim para manter a distância entre eles. Ao fazê-lo, exacerbou sua cisão em detrimento de si mesmo, e uma espiral viciosa ganhou ímpeto.

Teria sido necessário um ajuste sutil e profundo de seus seres para permitir que a não-integração seguisse seu caminho. Cada um, no entanto, provou, cortejou e prosperou por conta dela. Van Gogh estava empolgado com sua liberdade emergente como artista, sua crescente capacidade de ser ele mesmo. Ele falou um pouco de forma apologética, mas também desafiadoramente sobre suas telas rude e irregulares nas quais a tela nua aparecia. Seus trabalhos, como os últimos poemas de Plath, tinham vida própria e assumiram uma surpreendente distinção. Plath não tinha uma paisagem visível à sua frente e talvez estivesse mais consciente do abismo de onde surgiam seus poemas. Van Gogh era mais sintonizado em como a arte transformava, ao invés de criar, a realidade. Ele estava profundamente envolvido nos modos como a arte e a realidade alimentavam uma transcendência mútua. Mais e mais, Plath não conseguia afastar os olhos da escuridão sem forma de onde surgiam as palavras. Van Gogh foi possuído cada vez mais pela forma como as trevas tomam conta da luz primordial. Havia algo sem forma e frágil em cada um deles, mas também obstinado e determinado. Mas, ao final das contas, cada apresentava uma sensibilidade própria.

Plath e Van Gogh demonstram que um indivíduo pode simultaneamente prosperar e ser destruído por uma não-integração. Jung, em seu discurso, desenvolveu uma abordagem tripla para entender como um indivíduo pode ser eliminado por conta de seu fascínio pela criatividade. Ele informalmente fala dos perigos do inconsciente e, particularmente, do ego ser inundado por um arquétipo. No entanto, ele tende a enfatizar que é uma atitude comprimida e uma fraqueza por parte do ego que torna o inconsciente tão perigoso. Às vezes, ele se empolga e fala em tom severo sobre os poderes perigosos das profundezas inconscientes e moraliza os pontos fortes e fracos da consciência do ego. Mas o que ele parece enfatizar acima de tudo é uma atitude estreita, unilateral e inflexível do ego (em outras palavras, sua preocupação com a sobrevivência prática) que o condiciona a ser hostil à realidade psíquica como um todo. No final, a hostilidade do ego é refletida e encontra hostilidade em toda a psique.

Discuti essa formulação anteriormente (capítulos 2 e 5) e não irei explorar mais seus problemas agora. O que desejo observar aqui é o acerto da ênfase fenomenológica de Jung sobre uma certa inflexibilidade que permeia a personalidade no impulso rumo à loucura. Ele enfatiza uma tirania estreita e superficial do ego, a qual deve ser destruída. Ele não está errado, mas a cisão/transbordamento[32] resultante entre o ego e o inconsciente profundo é enganosa, uma vez que a rigidez que ele percebe percorre toda a psique. Parece manchar e moldar o self. Ela anda de mãos dadas com a hipersensibilidade do indivíduo, a tal ponto que um vínculo entre hipersensibilidade e rigidez parece quase um pressuposto psicossomático.

A rigidez que marca a psicose é mais do que um isolamento contra a hipersensibilidade. Parece como um fato tanto básico quanto a sensibilidade em si mesma. Como mencionei anteriormente a determinação apaixonada andava junto com a vulnerabilidade de van Gogh. Um interesse obsessivo e apaixonado é parte do trabalho criativo de modo geral. [33] Restrições estruturais, respostas indescritíveis e fluidas que funcionam com e através delas constituem dois aspectos básicos de nossa natureza. Em bom funcionamento, a tensão entre esses aspectos da experiência é produtiva. Na psicose, degenera-se em um confronto belicoso ou até pior. Uma caricatura macabra de possibilidades pode ocorrer. As polaridades tornam-se extremas e inversas, ou ambas: o que é rígido torna-se mais rígido e o que é fluido se torna caótico, ou o que é duro torna-se mole e o que é mole enrijece.

O entrelaçamento de rigidez e fluidez, tão importante na fenomenologia da psicose, reflete-se nos conceitos básicos da psicanálise (ver também os capítulos 1 e 6). Para Freud, a libido é tanto rígida quanto fluida. A libido é fluida e elétrica em sua capacidade de mudar de forma e de investir em uma ampla gama de objetos, mas suas funções básicas são as mesmas, tão fixas quanto a respiração ou a circulação do sangue. É muito simples igualar rigidez com superego e fluidez com id, como é feito frequentemente. Freud escreveu sobre o id como um caldeirão de excitações fervilhantes, mas também se desculpou por sua composição e propósito monótonos e inflexíveis. De fato, ele escreveu exemplos de extrema rigidez em termos de “viscosidade” e “inércia” da libido e do id.

A conjunção de rigidez e fluidez que caracteriza a descrição freudiano da libido e do inconsciente é uma característica da vida psíquica em geral. Para Jung, os arquétipos funcionavam como estrelas fixas que constituem a arquitetura geral da vida da pessoa, ainda que uma boa dose da capacidade de inverter papéis e aproximá-los seja possível, Jung observou como o instinto e o espírito facilmente se transformam em personalidades lábeis e, e de um modo geral, que o self evolui através de inversões de papel.

Ehrenzweig contrastou os impulsos fixos do id com uma matriz egóica inconsciente fluida que dissolve, examina e reorganiza as possibilidades experienciais. Mapeou as fases pelas quais o ego passa dissolvendo-se e reconstituindo-se repetidamente, encontrando uma rigidez típica na obra de artistas psicóticos, apesar de seu conteúdo impressionante. Segundo Ehrenzweig, os indivíduos psicóticos têm horror extremo de se entregarem ao fluxo e refluxo de modos de percepção mais ou menos diferenciáveis. Eles lutam contra a perda do ego ou contra um modo mais “indiferenciado” de funcionamento. O ego está preso nas garras de uma rigidez implacável e está empenhado em selar a si mesmo. Não confia nem em si nem na psique como um todo.

Ehrenzweig sentia, assim, que era um erro intensificar ainda mais a rigidez psíquica tentando, simplesmente ou principalmente, ajudar o indivíduo psicótico a fortalecer suas defesas. O que é necessário é a descoberta de uma maneira inteiramente nova de se relacionar com modos mais profundos de percepção. A vida inconsciente do ego ou do Self precisa de nutrição e crescimento. Aos poucos, o indivíduo precisa ser ajudado a deixar fluir e confiar nos ritmos de processos mais profundos. Ao mesmo tempo, o trabalho deve facilitar a reorganização incessante desses processos mais profundos. Mais importante do que reforçar as defesas superficiais do ego é um tipo de reabastecimento e redirecionamento completo da vida psíquica, de modo que o sujeito possa tornar-se mais receptivo ao mistério da experiência. A matriz do ego inconsciente deve vir a agir mais como um útero fértil ou como um continente capaz de sustentar o jogo dos opostos, particularmente a plasticidade e a determinação do trabalho psíquico.

Qual é a relação entre o funcionamento inconsciente como um bom continente e uma não-integração criativa? Não seria a não-integração, por definição, sem continente? Ou seria a não-integração possível apenas porque se confia na capacidade do continente? Levanto estas questões, embora não possa respondê-las neste momento. Elas tocam em questões que são cruciais para entendermos psicose, mente e Self. Muito da obra de autores como Winnicott e Bion diz respeito, de uma forma ou outra, à dualidade paradoxal entre continente e ausência de continente[34]. Na psicose, a não-integração é ameaçadora. O indivíduo tem pavor da desintegração irreversível. O indivíduo vê e sente a aniquilação como algo iminente e contínuo. Ao mesmo tempo, a contenção e a ausência de contenção também são ameaçadoras. No dizer de Green, espaço psíquico na psicose tende a estar demasiadamente preenchido ou esvaziado ao invés de “arejado”. [35] Em psicose, mesmo um continente “bom” talvez possa ser sentido como sendo uma armadilha sufocante, apesar de que estar sem continente é permanecer não nascido e sem rosto. Muitos indivíduos esquizofrênicos reclamam de parecerem muito jovens e sem marcas, apesar de não suportarem a identificação, como se a ausência de definições fosse uma liberdade. Em tais casos, tanto a liberdade como a definição são experimentadas como catastróficas. O indivíduo pode matar-se para se desfazer tanto da liberdade (fluidez), quanto da definição (rigidez), tendo em vista que a primeira dissolve e a segunda enterra o si mesmo. Ao menos na loucura um milagre pode ainda acontecer, embora muita angústia fútil seja depositada nessa esperança.

 

A face humana: um “continente sem contenção” perguntar para Luiz

O trabalho em níveis profundos com muitos pacientes sugere que o sentido de si e do outro surge espontaneamente, contiguamente. O si mesmo e o outro parecem naturalmente organiza um ao outro. Em certos momentos, os indivíduos podem se encontrar relatando experiências que podem ser resumidas da seguinte maneira:

Eu vejo você, mas não exatamente você. Eu estou experimentando uma versão mais real, perfeita de você, um você luminoso, inexprimivelmente radiante e fluido. Eu posso entrar e sair de você ainda me sentindo mais eu mesma do que nunca. É como se eu entrasse e passasse por um meio altamente carregado, mas sem resistência, e me sentisse novamente consciente e restaurado.[36]

Em tais experiências, o outro mantém sua personalidade específica e cotidiana ― o que o define. Ao mesmo tempo, ele é transformado em algo mais ou algo diferente de si mesmo, um portador de um senso translúcido de imaterialidade, fluidez inefável. O Ser pessoal é aqui percebido como distinto, ainda que existindo plena e misteriosamente em um estado de união, cada polo tornado possível e pleno pelo outro. Na medida em que se vive nesta realidade psíquica sujeito-sujeito, significados, humores, intenções e atitudes expressivas parecem ser experimentados com transparência direta e imediata. O sentimento de completude pode ser inicialmente enraizado no estar ciente implícito de que o si mesmo e o outro se originam mutuamente permeando, ainda que transcendendo, um ao outro ― um ato criativo primário renovado a cada nível do desenvolvimento.

A face humana é o centro físico do senso si mesmo-outro. A centralidade do rosto humano enquanto simbólica da personalidade permeia o tecido da experiência humana. A relação sexual face a face e o bebê olhando fixamente captando o rosto materno durante a amamentação testemunham o quão completamente nós somos moldados por nossa percepção da expressão. A expressão humana é    o coração da sua percepção. A aparição de uma face é um indicador de que uma outra personalidade está presente. Quando a criança entra em pânico com a ausência da mãe, é provável que uma imagem de seu rosto, não seu seio, traga mais conforto. Talvez para o bebê, o mundo seja muitas vezes uma espécie de mandala fluida, caleidoscópica, com o rosto humano no seu centro.[37] O outro é experienciado não simplesmente como limite, mas também como um veículo de renascimento, uma abertura infinita. A distinção entre continente e ausência de continente desaparece.

Uma das grandes distorções da teoria psicanalítica foi sua tendência em igualar o rosto ao seio. Para os psicanalistas, geralmente, o rosto é um símbolo do seio, em vez de uma realidade psíquica crucial por si só. Isso foi resultado de um preconceito que colocou maior ênfase na experiência tátil (em primeiro lugar, oral) do que na experiência visual na formação inicial do si mesmo. Um excelente exemplo de como esse preconceito distorceu a interpretação de dados clínicos e experimentais é o trabalho de Spitz, cujas descobertas marcam um ponto de virada na compreensão da experiência infantil.

Spitz descobriu que o bebê sorria para um rosto ou uma máscara facial com olhos e nariz retratado por aproximadamente dois ou três meses de idade.[38] O sorriso coerente e radiante em questão exigia uma experiência visual e não se originava apenas do toque. No entanto, apesar de seus próprios dados, que enfatizavam a visão e um elemento de distância, Spitz insistiu em tentar compreender suas descobertas em termos de “percepção oral”, que ele chamou de “marco diferencial das coisas”[39], quaisquer que sejam essas coisas. Segundo sua parcialidade, ele interpretou o sorriso do bebê como uma técnica de sobrevivência, uma espécie de coerção oral. Isto é, o sorriso foi tomado principalmente como um gesto adaptativo que assegurava o cuidado atento da mãe e, em particular, a alimentação. Spitz atribuiu ao sorriso do bebê uma certa intenção apenas manipuladora e controladora, aliada ao anseio de domínio do qual Freud teorizou.

É improvável que se possa explicar o surgimento da resposta sorridente em questão, em essência, como Spitz tentou fazer, em termos de uma teoria do sinal biológico informada psicanaliticamente, ou seja, em termos do valor funcional do sorriso em induzir respostas maternas empáticas para garantir a sobrevivência do bebê. A novidade e o significado percebido do sorriso, o excedente de sua coerência expressiva, marcam uma dimensão de cognição responsiva que vai além do alcance exalado pela sinalização e consciência animal. A atribuição de Spitz de uma intenção adaptativa e sedutora de controlar os primeiros sorrisos do bebê não reconhece suficientemente as implicações daquilo que é mais significativo a respeito dele: sua expressão essencialmente aberta e sem defesas de deleite vivo e vibrante. Sua necessidade de acomodar suas descobertas em uma teoria que as explicasse em termos desígnio biológicos (retrabalhados em termos psico-biológicos e psicanalíticos) enfraqueceu a sua elaboração de uma fenomenologia mais completa do sorriso.

A reação sorridente que Spitz estudou parece refletir um tempo em que dissociações radicais entre pensamento-sentimento-ação não tinham se desenvolvido. Muito em breve, o bebê sorrirá quando estiver zangado ou assustado (sem dúvida por volta dos oito meses). Seu sorriso pode adquirir uma característica sedutora, desenvolver lugares inexpressivos ou inertes e até enrijecer ou congelar. Mas me parece que a resposta sorridente precoce, coerente e completa, aponta para um elemento não-paranoico na base do ego, que, com o tempo, atravessará todo tipo de crises ligadas a percepção de danos e desigualdades de forças. Suspeito que a limitação de Spitz se origina de uma das grandes forças da psicanálise. A psicanálise se desenvolveu no que pode ser o estudo mais sistemático do simbolismo corporal na história das ideias. O dito de Freud de que o ego é “em primeiro lugar um ego corporal” resume essa orientação.[40] Não é de surpreender que Spitz tenha trabalhado dentro dos limites de uma visão parcial que se mostrou mais proveitosa. No entanto, uma correção é pertinente.

Agora parece necessário diferenciar as diversas fontes do sentimento do ego ou do si mesmo ― sem reduzir um ao outro.  Encontra-se apoio no enraizamento duplo (ou múltiplo) do sentimento de si mesmo no recente reconhecimento da importância do olhar infantil (e da audição), bem como do toque do bebê.[41] A entrada simultânea da distância e dos sentidos de contato joga o bebê em diferentes mundos de experiência, que devem ser coordenados. As antigas controvérsias teóricas sobre se a visão ou toque é o primeiro ou o mais poderoso organizador tiveram uma história muito tempestuosa por conta da contribuição radical de ambos. As descrições lúdicas de Bion sobre as dificuldades envolvidas em alcançar o “senso comum” baseiam-se nos tipos de mundos experienciais pelos quais passamos sob a direção de diferentes modalidades sensoriais. Minhas próprias observações sugerem que, quando não está cansado, faminto ou desconfortável, o bebê apresenta respostas em sintonia com um campo organizado visualmente. Seu senso de si mesmo tende a entrar em colapso com a perda do apoio visual. Problemas em alcançar o equilíbrio adequado entre a distância e a proximidade em qualquer situação estão parcialmente enraizados no sentido mutável do eu e do outro, associados à visão e ao tato.

A indistinção teórica das fontes dos sentimentos do si mesmo, muitas vezes, leva à confusão clínica. Um exemplo convincente disso pode ser encontrado no relato de Milner sobre sua longa terapia com uma mulher esquizofrênica.[42]  Em certos momentos, a paciente de Milner produzia desenhos e fantasias em que o sol e o olho estavam localizados no ânus. Milner considerou isso um sinal de que um estado potencialmente positivo de indiferenciação estava ocorrendo. Elementos superiores e inferiores se fundiram em uma perda de distinções, que seriam regenerativas. Embora este ponto de vista seja útil, sinto que é simples demais.

Do lado negativo, o sol e o olho no ânus representam uma ruptura ou perversão de distinções natural. Acredito que seja um produto da deterioração ligado à ameaça de perda do sentimento de si mesmo que normalmente é alimentado e sustentado pela tensão entre diferentes dimensões experienciais. O si mesmo fecalizado ou deteriorado, um si mesmo de merda ou de lixo, tende a puxar para baixo e rebaixar as funções da personalidade.[43] Em termos da fusão entre ânus/sol/ olho, a consciência solar (associada com visão, luz, distância) é rebaixada e desfeita. A contribuição especificamente visual para o sentido do si mesmo colapsa e é, por assim dizer, sugada pelo cu.

Pelo lado positivo, o sol/olho-no-anus não é simplesmente uma fecalização da consciência, mas também uma tentativa da consciência de inundar o corpo, um movimento potencial em direção à individualidade corporificada (Milner disse isso). É também uma tentativa de dar uma olhada dentro do ânus e ver a patologia do indivíduo. Mais do que celebrar a não-diferenciação, tais imagens podem ser usadas para dramatizar os anseios elementares de ver e ser. Aspectos mentais e físicos do sentimento do si mesmo, em qualquer situação, devem ser explicitados mais do que conceitualmente reduzidos à não-diferenciação.

Escrevo isso apesar do meu sentimento de que o relato de Milner é um dos melhores da literatura clínica. No entanto, ela mesma reclama que a criatividade de sua paciente tende a afrouxar e a perder intensidade à medida que a terapia avança. Esta é uma queixa familiar no trabalho com doença psicológica de pessoas criativas. Gostaria de sugerir que, no caso de Milner, essa perda de intensidade criativa pode estar parcialmente relacionada a interpretações que enfatizam a indiferenciação enquanto ponto de partida do sujeito, em vez de manter as tensões e harmonias entre dimensões distintas, mas interligadas.[44]

Na psicose, as distinções do que está em cima e do que está embaixo tendem a ser exageradas e se rompem como resultado de processos de isolamento e deterioração. Isto é particularmente verdade no que diz respeito às experiências que apresentam o rosto como um centro. As imagens do rosto são frequentemente ridicularizadas e degradadas no curso da terapia. Na psicose ou em fases profundas do trabalho terapêutico, os genitais ou o ânus podem ser vistos ou sentidos como inscritos na face do terapeuta e vice-versa. Nesses momentos, o analista é visto literalmente como um “bundão” ou um “cuzão[45]“. Até certo ponto, essas percepções podem ser precisas. Mas muitas vezes expressam uma autoimagem má e uma necessidade de macular não apenas qualquer bondade, mas também a realidade e a coerência do outro. O sujeito tenta jogar para baixo as distinções potencialmente curativas para um pântano irremediável, ou transformá-las em um conjunto de armas, “falicizando e fecalizando” a experiência. Escrevi em outro lugar sobre as vicissitudes do rosto como um centro de experiência psíquica, mas gostaria de ressaltar aspectos desse fenômeno com uma das sessões de minha paciente, Rena, em uma sessão que ocorreu cerca de seis meses após as relatadas no Capítulo 7.

Rena estava expressando seu medo de que eu a visse distorcida. Era um sentimento antigo de que ela era deformada pelos seus próprios sentimentos, e de que eu veria tudo o que havia de errado com ela. No passado, muitas vezes, sentia que sua cabeça estava alongada e temia que, se eu olhasse para ela, ela se transformaria em pedra. Indaguei se algo petrificado em mima congelava. Notei que ela inverteu a imagem da Medusa. Por algum tempo ela estava falando sobre descongelar. Na semana anterior, ela sonhou com uma mulher “com olhos de vidro e olhos de pênis”, que eu e ela criamos em um ritual de vodu. Essa mulher era invulnerável, “enfeitiçante” e penetrante. Seu corpo estava rígido. Em parte, representava um sentido oculto de Onisciência alimentada pelo elemento gnóstico da terapia e destacava um aspecto maluco e megalomaníaco de nossas personalidades. Rena disse em resposta a ela: “Eu não quero ficar excitada ou ter sentimentos”. Ela então disse que estava destroçada. Um demônio pulsando dentro dela a mantinha acordada à noite: “Algo sombrio e implacável não me deixa descongelar e fluir.” Lembrou-se de sua mãe vindo atrás dela com uma régua, mas reconheceu que além da força de sua mãe, sua própria mente originária estava agora demonizada. A agitação que sua mãe provocava ou incrementava para mudar a forma de todo o seu ser.

Esta sessão específica progrediu com um relato de descongelamento das defesas fálicas. Sua alergia estava pior: “Eu costumava ser invulnerável. Nunca deixo as coisas físicas me incomodarem. Eu estava imune. Agora eu simplesmente não posso suportar as coisas. Minha armadura está derretendo”.

Depois de algum silêncio, ela continuou: “Tenho medo de cheiros. Sonhei que estava na cama abraçando os seios de uma menina. Quero inundar seus seios e fazer o diabo com seus pequenos genitais de menina”[46].

Eu: Você quer dizer que tocar seus seios inclui sexo, mas é mais, não é primariamente sexual. Seios são sensações, intimidade.

R.: Quero ver o rosto dela e não ser inundada. Sinto uma conexão entre o rosto e os seios agora. Eu não quero enterrá-la. Sim, quero ter intimidade. Eu não estou pronta para genitais. Ela soterra tudo. Sinto uma deterioração tão profunda e a preencho com sexo. Isso costumava fazer a dor ir embora.

Passei o final de semana sentindo a destruição. Eu vi destruição em todo lugar. Eu me identifico com pessoas que dormem nas calçadas, moradores de rua.  Sei o que eles estão sentindo com suas costas curvadas. Eles estão enrolados em aversão a si mesmos. Em posições fetais nas calçadas, enrolados em direção a seus próprios odores. Eu sinto neles a dor da minha própria alma destruída.

Eu vi uma mulher urinar curvada com a cabeça entre as pernas. Sua bunda estava de frente para os carros que passavam na rua. Seu rosto estava escondido pelos trapos que ela usava. Sua bunda era seu rosto manchado de merda. O que ela deve sentir em relação a si mesma? Que degradação total e colapso frente a este horror. Tanta sujeira e fedores. Tão isolada que beira a autossuficiência. Quero dizer que aquela mulher não estava no mundo. No entanto, seus dedos eram capazes, habilidosos e pareciam ter um saber. Uma vez eu vi um mendigo sentado em uma sarjeta com as calças abaixadas. Seu chapéu, cachecol e barba escondiam seu rosto. O que vi no rosto dele foi rugosidade avermelhada, ranho e sujeira. Ele usava um casaco ou camisa longa.  Vi seu pênis no centro de um mundo totalmente sujo, como uma linda flor, no centro de toda a escória. A mão desta mulher – com tamanho propósito, esperando que ela terminasse, era assim.

O fato de que não pude ver seu rosto era muito importante nessa cena. Seu rosto estava para baixo entre suas pernas. Havia lixo a sua volta e sangue seco. Imagino suas entranhas saindo.  Fico no sangue e entranhas balançando a espada e gritando “Eu tenho o direito de viver”. Entro no ventre de minha mãe e saio branca, limpa e descomplicada. Mas o sangue é força e vida. Alguém tem que estar maculado. Eu luto pelo meu rosto. Não acho que posso ter um. Deve ser possível. O pênis do vagabundo e a mão da senhora de trapo sobrevivem. Eles são minha esperança eterna. Estou de joelhos suplicando. Nunca me senti totalmente de joelhos antes, tão diferente de uma rebeldia destrutiva. Uma parte espiritual de mim sai da vitalidade do sangue. Que alívio estar de joelhos, para poder suplicar.  Uma esperança mais profunda do que a dor.

 

Rena começou a descobrir a relação de diferença de conexão entre o rosto-seio-bunda- pênis e mostra sinais de aprofundar a dialética entre a autoafirmação e a rendição. O rosto surge como um centro, a se combater e para o qual orar. Não pode ser tomado como garantido, uma vez que está sempre em perigo de ser inundado e estragado por ataques anais e excitação genital. O relacionamento de Rena com o pessoal ainda não é seguro o suficiente para absorver e coordenar a rica diversidade de sentimentos corporais que a atravessam. No entanto, mais e mais o rosto está perdido e retorna. É uma questão de tempo e trabalho árduo antes que ela aprenda a confiar em seu ressurgimento espontâneo, não importa o que a assola.

Nesta sessão, a relação entre a face pessoal e as funções corporais anônimas é extremamente complexa. Rena é momentaneamente salva e elevada por meio da experiência de uma inteligência de uma mão quase anônima ou a beleza surpreendente de um pênis em meio ao corrompido. Neste último caso, é como se a equação freudiana, pênis = criança, procedesse e a Rena é trazida a si mesma pelo pathos da inocência brilhando no horror, ― como o bebê na manjedoura. No primeiro caso, a mão humana, mesmo prestes a limpar o fundilho, preserva uma ligação com o espírito. Nas sepulturas do holocausto, eram acima de tudo, as mãos das vítimas que diziam tudo. Os rostos esqueléticos eram excessivamente diretos. As mãos do excelente mímico, cujo rosto parece a morte, dizem o indizível. No entanto, sem o vínculo inerente à face pessoal, o veículo final da intimidade com a distância, as mãos ficariam sem expressão. Na experiência de Rena, o anônimo e o pessoal entrelaçaram-se, alimentaram-se e se harmonizaram. No caso dela, a mão e o pênis apontavam para o rosto.

Alguns indivíduos com perturbação precoce são incapazes de criar uma imagem rica e libertadora de um rosto. O último permanece distorcido, inexpressivo ou ausente. Por exemplo, o próprio rosto é considerado hediondo ou não se pode construir uma imagem viável do rosto do outro na ausência deste último. Em O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, um indivíduo sofreu uma divisão entre uma face externa, que parecia normal, mas era falsa e uma face interna, que era má, porém verdadeira. Com o tempo, não se podia dizer qual era verdadeira ou falsa, pois ambas as faces caíram no esquecimento. Na terapia, muitas vezes é uma questão de sintonizar e suscitar processos de crescimento silencioso a partir dos quais uma face íntegra e coerente pode ser constituída.

Tal face pode emergir em sonhos e imagens passageiras que gradualmente levam adiante um novo senso de si e do outro. Em caso de deficiência grave de personalidade e processos de deterioração, os elementos de saúde no sonho são facilmente dominados pela força do hábito e da inércia. Novos aspectos de faces são mal interpretados e reduzidos ao menor denominador possível. O indivíduo deve ser ajudado a lidar com diferenças sutis nos personagens que produz. O mesmo personagem que aparece, muitas vezes, pode, como um novo personagem, dizer coisas nunca ditas. Aqui o trabalhador não deve permitir-se ser absorvido pela ressaca negativa que procura afogar o novo, não importa quão desesperadas sejam as aparências. Com uma firme compreensão de princípios, pode-se tentar apoiar uma pessoa no meio de distúrbios para permitir que um rosto complexo emerja e evolua.

De todas as áreas do corpo, a face humana é mais a centralmente expressiva da personalidade humana e exerce sua proeminência como um princípio organizador no campo do significado. Ela atua como um ponto de referência pelo qual todas as outras áreas do corpo podem adquirir um significado pessoal mais profundo. Outras áreas do corpo também atuam como poderosos focos experienciais que se referem uns aos outros e frequentemente desafiam a primazia da face. Por exemplo, por um tempo, a luxúria pode dissolver uma face. No entanto, pressões corporais e linhas de associação orientadas ao corpo geralmente estão situadas dentro de um horizonte experiencial em que a face tem primazia.

À medida que a terapia se desdobra, a face do paciente pode realmente mudar. Claro, a vida sozinha pode e deve fazer isso. Mas muitas pessoas permanecem bloqueadas ou mudam parar pior se forem deixadas aos seus próprios recursos e à mercê do tempo. Por exemplo, sem ajuda, Rena provavelmente teria se amarrado em nós cada vez mais apertados. Em vez disso, como a sessão acima sugere, ela pode se descobrir em modos tanto rebelde quanto suplicante e deixar os dois lados de sua natureza se desenvolverem. Sua face cresceu em sutileza e riqueza de sentimento, ao mesmo tempo irônica e alegre. Aprofundou-se na apreciação da finitude transmitida e ao mesmo tempo parecia tocada pelo infinito.

A face humana é um continente sem contenção por excelência. Através dela, lemos e mostramos os resultados de nossos trabalhos. Ela mostra o sinal da presença, embora opaca, e exige um sinal de conhecimento do centro do desconhecido. Ela surge como um ponto focal em um vasto ambiente sem face e descobre o anonimato como seu parceiro íntimo. A falta de um centro na ausência de uma face oscila com a face como um ponteiro em direção a um centro – uma busca dançante através de horizontes infinitos.

 

Símbolos da loucura: Insetos

Ao longo deste livro, muitos símbolos da loucura são discutidos em forma de exemplos clínicos. Alguns enfatizam aspectos mentais, outros físicos do self. Alguns enfatizam uma nitidez de definição, outros a explosividade amorfa e a inércia. Os símbolos da loucura assumem a forma de demônios e máquinas satânicas, mas também a relativa ausência de forma da água, da eletricidade e do ar. Uma das grandes ironias ou paradoxos da vida psíquica é que qualquer tendência pode funcionar de múltiplas maneiras. Os implacáveis processos de degradação que os demônios produzem podem ser uma forma oculta de dar vida à autoafirmação. Um sonho de ser um herói voando no ar pode expressar uma fuga de realidades dolorosas, mas também uma visão panorâmica que pressagia um crescimento da consciência.  Sonhos de inundações avassaladoras podem sugerir psicose ou suicídio, mas também um desejo desorientado e desesperado de renascer. Anteriormente, neste capítulo, falei de diferentes formas de loucura simbolizadas por um camundongo e por cobras, uma guerra entre diferentes orientações psíquicas. Minha ênfase estava na rigidez do caráter psicótico, uma implacabilidade que perseverou através de elementos rígidos ou fluídos, inundando ou deteriorando, dissolvendo ou enchendo – dilaceramento ou fusão.

Dos vários símbolos da loucura, poucos caracterizam sua rigidez e implacabilidade tão bem quanto os insetos. Não é por acaso que bugs[47] é um termo coloquial ou gíria para a loucura. Muitas vezes, um indivíduo psicótico reclama de pensamentos que o assolam como enxames de insetos. No filme El Topo, de Jodorowiski, a jornada do herói em direção à iluminação exige que ele assimile a loucura. Em uma cena, seu rosto está coberto de abelhas que o aferroam enquanto ele se retorce no chão em tormento. Um ponto de virada na doença de uma pessoa foi o sonho no qual uma aranha venenosa aparece. No meio de seu terror, o sonhador, de repente, percebeu que não precisava ser um observador paralisado e que havia algo histriônico em seu estado. Por um momento, ele se sentiu livre e capaz. Anos de paranoia pareciam sair dele enquanto ele experimentava o sentimento de liberdade.

Geralmente, aponta-se para a cabeça quando se refere a “malucos” (bugs) como um estado de Ser. No entanto, os insetos reuniem referências ao corpo e ao ego mental. Insetos voadores, em particular, podem se referir à cabeça separada do corpo. Mas a verdadeira visão do corpo de um inseto evoca a sensação de uma gama de experiências corporais altamente estreita, rígida e talvez até ossificada. O corpo de um inseto é facilmente convertido em um símbolo de self corporal anão e gnômico. Nos filmes de ficção científica, os insetos são ampliados para monstros perigosos, de várias maneiras, estúpidas ou espertas. O que é mais chocante nesses filmes é como o inseto permanece sem rosto, apesar da ampliação dos olhos e da boca. É como se o corpo tivesse sido reduzido à sua natureza esquelética, despojando-se tudo que é macio, quente e munido de pessoalidade.

Em um sentido importante, isso é uma ilusão. Os insetos são moles e quebradiços. Eles são moles e trituráveis. Muitas das primeiras perguntas das crianças sobre a morte surgem do brincar com um inseto que, finalmente, para de se mover. Uma criança pode repetidamente esmagar insetos para fazer um estudo dessa experiência. Os insetos são associados desde cedo ao mistério da mortalidade e da loucura.

Os psicanalistas acham que os insetos podem simbolizar bebês, mamilos, pênis e fezes. Esses quatro termos frequentemente   transformam-se um no outro. Insetos são minúsculos, rastejantes ou voadores. A sua associação com mamilo e pênis, em parte, se refere à sua atividade. Em patologia severa, o elemento fecal tende a deteriorar os outros.  Uma integração mais completa de passividade e atividade é exigida na experiência anal, visto que o senso de dentro e fora, e, correlativamente, self e outro, é basicamente ambíguo.[48] Sucção oral e penetração fálica se tornam absorvidas pelo ânus e remodeladas por cenários degradantes, obsessivos e perversos. Este último inclui dúvida atormentadora sobre si mesmo e tendências onipotentes e viciantes.

Um paciente psicótico contou que ficava comendo besouros sentado na areia da praia entre dois e quatro anos. Ele gostava de perturbar seus pais com isso. No entanto, ele também fazia isso sozinho. Em retrospecto, ele sentia que os insetos expressavam sua falta de autoestima, “pequena e de merda”. Eles se tornaram um veículo de provocação e afronta, mas no fundo ele podia sentir a fealdade de seu ser completamente. Costumava procurar por eles na areia. Cavar para encontrá-los era uma parte essencial do ritual. Quando ele encontrasse um, o pegaria, o examinaria e o espremeria, depois o colocaria na boca, e o mastigaria e engoliria. Cada parte do processo era importante. Demorava-se em cada passo como se estivesse saboreando. No entanto, lembra de sentir-se estúpido, vago e desfocado. Não importa o quão fina e precisamente seguia os passos, ele permanecia à deriva e “insano” [buggy]. Lembrava-se da cor queimada da areia, do preto amarronzado dos besouros, da grama verde e do céu azul. Cores eram mais importantes que objetos. Ele não sabia por que ele estava sentado lá comendo besouros, exceto que tinha que fazê-lo. Para poder colocá-los em sua boca ele tinha de ser imundo e inútil. Ele achava engraçado. Ao mesmo tempo, ele teve a premonição nauseante de que nunca se sentiria melhor.

No filme de Jodorowsky, o herói, El Topo, seguiu a orientação de uma mulher tida como sábia, comendo um inseto nojento. O inseto foi associado a uma simulação de nascimento. Algo veio à tona, algo saiu. O herói, como o inseto, teve que renascer através da bruxa velha. Não havia dúvida de que o herói tinha que assimilar seu senso de inutilidade. Ele teve que aceitar o que era mais repulsivo na vida ―  a repulsa como tal. O inseto pode representar toda a corrupção física, de nascimento e morte, o horror da existência. Os psicanalistas podem ver nele a mãe fálica ou um horror à castração e todo o círculo sadomasoquista. No filme, era algo sem nome. Claramente, estava associado à superação de uma resistência, com algum tipo de imolação ou submissão. Renascer comendo o inseto significava, de alguma forma, ir além do inseto. Foi o fim de uma fuga dolorosa e mais um passo para encontrar o que deveria ser encontrado. Para o meu paciente que comia insetos, aquilo significava, em parte, encarar e não ser destruído pelo ódio de si mesmo insistente que maculava sua existência.

Como muitas pessoas, com sentimentos similares, meu paciente foi profundamente tocado pelas descrições de Kafka do ódio de si que é irremediável. No final de sua adolescência leu repetidas vezes A Metamorfose. No entanto, ao contrário do inseto de Kafka, meu paciente foi chamado e recebeu o apoio para suportar e ir além da sua “insanidade”[bugginess]. A imagem do inseto agia como um veículo para entrar em contato e trabalhar com tendências ativas e passivas profundamente tamponadas. No lado positivo, os insetos são persistentes. Eles nunca parecem desistir. Eles continuam se contorcendo e lutando até o fim. As abelhas e formigas são chamadas de ocupadas e são vistas como incessantemente produtivas. Nisto, eles parecem servir de modelo para a vontade de viver e continuar tentando. Ao se tornar um inseto, o homem louco afirma essa tenacidade.

No entanto, a parte oculta dessa tenacidade é uma espécie de passividade muda. Os insetos parecem se comportar de formas mais ou menos rigidamente determinadas e estereotipadas. Eles se apegam à maneira como foram programados e aderem aos sistemas de movimentação que trabalham por eles. Eles não parecem precisar se superar de maneira radical. Em termos humanos, a própria tenacidade de seu esforço inato retrata paradoxalmente um aspecto adesivo e apegado ao self. A ingestão do inseto pelo El Topo e o renascimento através da bruxa velha simulam aspectos dessa “passividade”, assim como o homem/inseto de Kafka sucumbe a ela. Nosso senso de desamparo do inseto diante de sua própria natureza é reforçado por sua pequenez e vulnerabilidade do polegar ou do pé humano. Lemos facilmente nele nossa própria fragilidade e inflexibilidade. No entanto, continuamos procurando uma saída de nós mesmos. A jornada de El Topo em direção e através do centro finalmente o levou a queimar completamente seu esqueleto interno. Ele virou fumaça e deixou de ocupar um lugar no espaço. Era sua solução final para o inseto interno, sua mensagem de transcendência.

Valeria a pena, mas está além do nosso propósito, buscar uma fenomenologia exaustiva dos insetos como símbolos da loucura. Esboçamos uma ampla gama de possibilidades. As abelhas são associadas a mel e flores, mas também picam. Moscas se acumulam no lixo e nas fezes. Insetos rastejantes podem ser úteis e venenosos. O inseto se alimenta de inseto. Dizemos: “Ele é uma pulga louca” e rimos da referência implícita a ser mordido no seu traseiro. “Ele tem um inseto [bug] até na bunda” torna enfática a associação entre loucura e analidade. Também dizemos: “Ele tem zumbidos na cabeça” e apontamos para o nosso cérebro zumbindo, cérebro fora de controle. Um tipo de anonimato domina essas referências. Todas elas se referem a estruturas, funções, experiências ou estados desprovidos de personalidade: bunda-cérebro, ativo-passivo, belo-feio, vivo-morto. Elas lembram o ditado do exército, aparentemente sensato e brincalhão, embora depreciativo, de que todas as mulheres são iguais com o rosto debaixo do travesseiro. Estando os insetos a comer o cérebro ou a cavar o ânus, o que está sempre ausente ali é o rosto.

Talvez as imagens mais dramáticas da loucura envolvendo insetos sejam precisamente aquelas em que o rosto é enxameado, aferroado e mordido até expor o osso. É como se os insetos não ficassem satisfeitos até que eles nos transformassem neles, esqueletos expostos. O horror está mais focado no que acontece com a face. No momento em que o paciente que comia insetos quando criança estava bem no caminho de superar sua doença, ele sonhou que descobria seu filho nos destroços de um prédio. Ele o embalava com um dos braços, enquanto acenava com o outro sobre a face do menino para impedir que os insetos o prejudicassem. Ao final do sonho o resultado era duvidoso.  Mas não foi desviado de seu foco. Seus esforços foram incansáveis. No período inicial de sua psicose, ele não teria tido chance. Ele não teria sido capaz de separar o ajudante e o ajudado. Os insetos o teriam atacado, mutilado ou destruído. Agora ele poderia usar sua implacabilidade para resgatar um aspecto sitiado de si mesmo. Ele poderia tentar aguentar até a ajuda chegar, o enxame passar ou a próxima transformação imprevista evoluir. Se necessário, daria a vida para salvar o rosto, o rosto de seu filho – um compromisso que representava um enorme crescimento de integridade e amor.

A “solução” do meu paciente foi muito diferente daquela do El Topo. O caminho do primeiro envolveu o advento do rosto como centro psíquico. Sua vida tinha como premissa um déficit de tudo que o rosto representa, a riqueza e a promessa da dimensão pessoal. A jornada de El Topo culminou na queima de seu rosto e em todos os traços de si mesmo, em todos os traços da pessoalidade. Para El Topo, apenas o vazio absoluto ou o nada era o antídoto para a vaidade humana. O ego foi dominado pela absoluta falta de rosto. Que contrastante isso parece ser ao desejo de ver a face de Deus e viver. Os dois juntos abrangem uma polaridade duradoura: os caminhos do vazio e da plenitude, a abertura infinita e a plenitude do rosto. Tanto meu paciente como El Topo passaram a viver da maneira mais honesta e plena–vazia possível. Pergunta-se como e onde, em sua jornada pelo tudo e pelo nada eles poderão se encontrar.

 

Ponto do não retorno

Muitos pacientes se queixam de uma sensação interminável de estar só. Eles não encontram um meio social ao qual possam sentir–se pertencentes. Eles sentem que não se encaixam em lugar algum. As categorias usuais de conexão, por exemplo, como família, raça, nação, trabalho, vários subgrupos e amigos, não funcionam para eles. Eles sentem, apesar do conhecimento em contrário, que isso é único para eles. Eles estão convencidos de que foram apontados como piores do que outros.  A eles falta um senso de fraternidade ou irmandade.

No decorrer do trabalho terapêutico, alguns desses pacientes ficarão bem o suficiente para procurar uma saída nos relacionamentos ou no trabalho, seja ele qual for. Para alguns, a família pode proporcionar um senso de comunidade. Outros podem encontrar laços sociais ou religiosos mais amplos. Mas, para um número crescente, nada pode realmente atenuar a sensação incômoda de ser diferente e ser incapaz de se conectar. Em algum sentido básico, esse indivíduo não é compreendido e não se compreende. Não tem para onde ir. Está sozinho. Sente isso no meio da vida familiar, social, religiosa ou profissional. Sente que algo deu errado irremediavelmente.

Para essas pessoas, o senso de conexão é alcançado aprofundando-se na solidão. Em algum momento, se alguém for longe o suficiente, descobrirá que faz parte de uma comunidade de pessoas solitárias. A marca registrada da sessão terapêutica é a descoberta da intimidade diante da solidão inflexível. O estigma e a vergonha que se sente por estar sozinho se transforma em uma consciência de que a solidão de alguém é parte de um processo maior, embora possamos apenas especular o seu significado e desfecho.

 

 

[1] A palavra corrupt em inglês expressa qualidades que ficam escondidas no português, visto que corrupto tomou uma conotação muito especifica em nossa língua. Corrupt é usado nesse texto como corrompido, danificado, estragado, distorcido.

[2] A palavra funny, em inglês, tanto pode significar engraçado como esquisito.

[3] Ver também Eigen, “On Omniscience” [in press]

[4] O “pavor da entrega sem limites à falta de recursos na situação analítica” sobre a qual Khan escreve se aplica a terapeutas tanto quanto aos pacientes. O artigo citado: “Dread of resourceless surrender in the analytuc situation. International Journal of Psycho-Analysis 52:225-230.

[5]  No original “mind over mater” que é um trocadilho com “mind over matter” (triunfo da mente sobre a matéria)

[6] Michael Eigen, “On Demonized Aspects of the Self” pp. 99-123; Idem, “Comments on Snakes Simbolism”, pp. 73-79

[7] Nota dos tradutores – Em muitas culturas as serpentes apresentam simbolismos muito diferentes. Em algumas representam a sabedoria, em outras a esperteza e assim por diante.

[8]  “On the Origin of the Influence Machine in Schizophrenia”, pp 519-556. A grande maioria dos artigos nesse capítulo foram extraídos de Eigen, “Comments on Snake Symbolism ”, pp.73-79; Eigen, “On Demonized Aspects of the Self”, pp. 106-116; Eigen, “On Omniscience” (no prelo)

[9] Federn, “Algumas Variações no sentimento do Ego”, pp.25/27; veja também capítulo 4, pp.143/147 deste livro.

[10] WINNICOTT, D. W- O uso de um objeto e o relacionamento através de identificações. In: Explorações

Psicanalíticas. Capítulo 34. P. 172

[11] Winnicott, D. W. O Brincar – A atividade Criativa e a Busca do Eu (Self). In O Brincar e a Realidade. cap. IV p.80

[12]  Idem- p. 81

[13] Lacan, Four Fundamental Concepts, p. 230

[14] Winnicott, “ O uso de um objeto e o Relacionamento através de Identificações. P. 171 In: Explorações Psicanalíticas.

[15]  Elkin, “On Selfhood and Development of Ego Structures in Infancy”, pp. 57/76; Eigen, “On the Significance of the  Face,” pp. 427-441; ver Capítulo 4, deste volume.

[16]  Apofática

[17] Berdyaev, Slavery and Freedom, pp. 20-80, 232-266; Macquarrie, Existencialism, pp. 138-141.

[18] Winnicott, “Transitional Objects and Transitional Phenomena,” pp. 89-97. Uma comparação rigorosa entre a liberdade primordial de Berdyaev e o espaço transicional de Winnicott está além do escopo deste livro, embora tal estudo poderia ser esclarecedor.

[19]  Matheus, 7:16

[20] NT: bom de adequado; bem de aparência ou bem aparentemente.

[21]  Alvarez, Deus Selvagem, pp. 97-98

[22] Binswanger, “Case of Ellen West”, p. 237-364

[23]  Rogers, “The Loneliness of Contemporary Man as seen in ‘the Case of Ellen West’”, pp. 94-101.

[24]  No original: “Out of the ash/I rise with my red hair/And I eat men like air”.  Tradução de Rodrigo Garcia Lopes e Maria

Cristina Lenz de Macedo, Campinas: Verus, 2007. Ariel edição bilíngue restaurada. p. 51

[25] Goldemberg, Letters Home, pp. 105-176

[26] Plath, “A Birthday Present”, p.44 idem, “Mary’s Song”, pp. 44-45. Provavelmente a versão que Dr. Eigen usa foi apenas

publicada nos Estados Unidos. A versão que encontramos em Português não inclui o poema Mary’s Song.

[27]  Em tradução livre.

[28]  Traduzimos XXXXX por mente vazia

[29] Bion, Atenção e Interpretação, Rio de Janeiro: Imago, 2006.  pp. 29-30

[30]  Bion, Elementos de Psicanálise, Rio de Janeiro: Zahar, 1966.  pp. 54,94.

[31] Oblivion:  usamos inconsciência no sentido de não haver um estado perceptivo.

[32] NT. Como algo que está represado e se rompe provocando u transbordamento.

[33] Köhler, “Obsessions of Normal People, ” pp. 398-412.

[34]  Winnicott, Play and Reality, pp. 11,112,130,141; Bion, Learning from Experience, pp. 91-98; idem, Attention and

     Interpretation, pp. 16,79, 96, 106,107,122; Eigen, “The area of Faith in Winnicott, Lacan and Bion”, pp. 413-433.

[35] Green, “The analyst, simbolization e absence in the analitic setting”, pp. 1-22.

[36]  Eigen, “On significance of the Face”, p.439. Também ver Eigen, “Instinctual  Fantasy and Ideal Images,” pp. 119-137;

idem, “Expression and Meaning,” pp. 291-312; idem, “Creativity, Instinctual Fantasy and Ideal Images,” pp. 316-339.

[37] Eigen, “Expression and Meaning”, p. 291; Elkin, “On the Origen  of the Self”, p.67.

[38] Spitz, First Year of Life, pp. 20,84, 91,100, 103

[39]  Ibid., p.92

[40] Chapters 4 and 6 of this volume; Eigen, “Dual Union or Undifferentiation,” pp. 422-424.

[41] Zelner, “Organization of Vocalization and Gaze in Early Mother-Infant Interactive Regulation,” pp. 18-22, 31-33; Eigen,

“On the  Signaficance of the Face, ” pp. 427-441; Idem, “Reflections on Eating and Breathing as Models of Mental

Functions,”  pp. 177-180; Elkin, “On Selfhood and Ego Structures in Infancy, ” pp 57-76; Bion, Elements of Psycho-

Analysis, pp. 95-96.

[42]  Milner, Hands of the Living God.

[43]  Eigen, “Dual Union or Undifferentiation,” p.424; veja também capítulo 5 deste volume.

[44]  Eigen, “Dual Union or Undifferentiation,” p. 424

[45] A palavra prick refere-se à genital masculina e tem um caráter bem ofensivo quando atribuída à uma pessoa.

Em Português não encontramos uma palavra que tivesse esse significado e fosse ligada à genitália masculina.

[46] NT- A frase da paciente soa muito desconexa, mas é exatamente como está no texto original.

[47]  N.T. A analogia só serve para o inglês.

[48] Eigen sugere a leitura do capitulo 5 – Hate – do livro de sua autoria Psychotic Core.

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